Arquivo

Perder o centro

É um lugar comum constatar que, no mundo de néon em que fomos transformando a política, as ideologias deixaram de ter interesse. A política vende-se, e consome-se, como qualquer outro produto. A imagem interessa mais que as ideias. As eleições ganham-se com a estratégia que a publicidade aconselhe. A conceção de “outdoors” é mais importante que a elaboração de um programa eleitoral. O número dos que veem uns, contrapostos aos que leem os outros assim o determina. Os governos e as oposições vão consultando os publicitários e as sondagens são o moderno oráculo que aponta sempre o caminho a seguir.

Neste universo consumista, em que a política apenas é mais um produto, interessa particularmente influenciar o maior número de consumidores/eleitores. E para atingir esse objetivo, dizem os entendidos no marketing político nacional, é necessário convencer “o centro”. O centro, dito nalgumas formulações mais abrasileiradas “o centrão”, é supostamente constituído por uma massa de potenciais votantes sem grande fidelidade eleitoral que se vão movendo para a esquerda ou para a direita, ou às vezes para direções indefiníveis e imprevisíveis, conforme a força de atração que, no momento eleitoral, se apresente como mais forte.

Segundo as dominantes opiniões dos politólogos nacionais, sem a conquista deste “centrão” não há maiorias, sem o domínio dessa posição movediça de eleitores flutuantes, as vitórias serão sempre escassas. Se não conquistar inteiramente “o centro” o vencedor arriscará sempre, ou um efémero tempo governativo, ou a necessidade de um compromisso que lhe assegure a manutenção do poder pelo tempo da legislatura.

Mas o namoro dessa área eleitoral, dizem, tem as suas regras e normas de conduta que, quando não cumpridas, determinam que a conquista será impossível ou, pelo menos, bastante improvável. Uma delas assegura que se um partido, ou um político, quiser ganhar o centro não deverá, em caso algum, afirmar-se numa posição ideológica de esquerda. O “centrão” desconfia da palavra esquerda, para além de desconfiar de ideologias. Pode votar na esquerda, mas apenas se esta lhe for apresentada muito bem embrulhadinha numa roupagem de moderação e contenção, porque a expressão “esquerda” lembra logo revoluções e vermelhidões incompatíveis com uma vidinha pacata e de sucesso.

É com certeza esta a razão que leva tanto analista político, normalmente alinhado com a área governativa, neste período pós congresso do Partido Socialista, a repisar o mote de que o PS virou à esquerda. Descodificando a mensagem: o PS afirma-se de esquerda, logo não conquistará o centro eleitoral, logo nunca terá maioria ainda que ganhe as próximas eleições legislativas.

Talvez esta seja uma verdade, ou talvez não. Pode António Costa não ganhar o centro, pode o PS não convencer a maioria dos eleitores de que é uma alternativa ao atual governo. Mas o que verdadeiramente importa é que a atitude de se afirmar como um partido com ideologia e com história, sem considerações de mero mercantilismo eleitoral, sem discursos formatados por exigências publicitárias, representa uma devolução da autenticidade à política.

Talvez fosse mais prudente, de um ponto de vista de marketing político, representar um outro papel, desempenhar uma personagem adaptada ao suposto gosto das maiorias, não excluir consensos e compromissos com nenhuma área, em suma, adotar a atitude que a publicidade aconselhasse. Não foi esse o caminho escolhido. Costa mostrou ao país um partido disposto a apresentar-se ao eleitorado com toda a carga do seu passado e da sua ideologia, um partido que, por ser de esquerda, não pactua com governações à direita, um partido que promete fazer diferente, ao invés de fazer o mesmo, mas com outro estilo. Poderá o PS não ganhar o centro, mas certamente ganhará credibilidade a política.

Por: Carlos Camejo Martins

* Inicia nesta edição uma colaboração mensal. Carlos Camejo Martins é militante do PS, antigo diretor do Centro Distrital da Segurança Social da Guarda e atual presidente do Conselho de Administração da empresa municipal Trancoso Eventos

Sobre o autor

Leave a Reply