Num tempo de crise, em que todos os custos do Estado são passados a pente fino e em que descobrimos que a ganância de alguns se sobrepõe ao interesse da maioria, ficamos estupefatos com os relatos das negociatas do “face oculta” e toda a trama de interesses à volta do sucateiro Godinho. De como Armando Vara, José Penedos e outros dirigentes políticos urdiram, alegadamente, um esquema em benefício próprio e prejudicando gravemente o interesse público.
Neste tempo em que descobrimos como tantos dirigentes políticos e ex-governantes enriqueceram rapidamente, devemos recordar que nem sempre foi assim. E que não é assim com todos. Nem hoje vivemos num alfobre onde todos são vilões e corruptos, nem no passado todos os políticos eram castos e puros.
Ainda assim, e a propósito do enriquecimento que vamos descobrindo de muitos ex-governantes, faço por recordar exemplos de pessoas que elevaram e nobilizaram a política. Nesta mesma edição, Fernando Pereira recorda, por exemplo, Vasco Gonçalves e outros governantes do pós-25 de Abril que se retiraram do poder sem levarem os bolsos cheios.
Enquanto escrevia o artigo aqui publicado há uma semana com a análise ao súbito enriquecimento de ex-governantes como Dias Loureiro, ou Pina Moura, ou Jorge Coelho, ou António Vitorino o que me veio à memória foi o Pegaso, essa marca espanhola de camiões, que nos idos de cinquenta se aventurou na produção de carros desportivos. Tão desportivos e excêntricos que só foram produzidos 60. E um foi oferecido a Francisco Craveiro Lopes, Presidente da República portuguesa, entre 1951 e 1958, – em pleno Estado Novo – quando visitou oficialmente Espanha, em 1953, e o Generalíssimo Franco decidiu impressioná-lo obsequiando-o com esse símbolo da indústria castelhana. Craveiro Lopes recebeu e agradeceu a oferta, manteve-o na sua posse enquanto esteve na presidência, mas quando Salazar lhe tirou o tapete para apoiar Américo Tomáz, antes de abandonar o cargo, registou o Pegaso em nome do Estado Português, Presidência da República. Ou seja, a viatura, um presente pessoal para o titular do cargo, passou a ser património do Estado. Craveiro Lopes partiu e o automóvel ficou (atualmente encontra-se exposto no Museu do Automóvel do Caramulo, onde pode ser visto).
Outra história, exemplificativa da integridade moral de Craveiro Lopes: rezam as crónicas que o seu filho Nuno Craveiro Lopes viajava com a mulher, então grávida, no comboio que descarrilou na linha do Estoril, em 1952, e que vitimou várias pessoas. Embora não tenham ficado feridos, a mulher terá ficado indisposta e não tendo arranjado transporte no local, o filho de Craveiro Lopes terá telefonado ao Presidente pedindo-lhe para enviar o carro da Presidência para os transportar para casa. Craveiro Lopes certificou-se que estavam bem de saúde e, depois, retorquiu que não poderia enviar qualquer carro em seu socorro, pois os carros oficiais eram exclusivamente para servirem os respetivos serviços e não para acudir à sua família ou tratar de assuntos de carácter pessoal.
Poderíamos continuar a recordar histórias de Craveiro Lopes e de muitos outros políticos e governantes que contrariam a imagem e os relatos de enriquecimento rápido que nos chegam. E também do uso e abuso do que é público. Hoje, qualquer dirigente reclama todos os seus direitos e cobra todos os serviços, seja em ajudas de custo ou em despesas de representação, seja em carro de serviço ou em cartão de crédito da instituição. Multiplicar rendimentos é o desiderato de muitos. Uma vergonha.
Como cantava o Zeca, “eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada…”
Luis Baptista-Martins
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