Tenho muitos e antigos agravos contra Cavaco Silva. Imputo-lhe, talvez injustamente, muitas das desgraças que atingiram o país durante os seus anos de vida pública. Outras lhe perdoarei, por ignorância minha ou por falta de espaço no livrinho de capas negras que lhe dedico há quase trinta anos.
Ainda me lembro de quando foi ministro das Finanças (e do Plano) de Sá Carneiro, no início dos anos 80, como me lembro também do estado em que deixou o país com os seus orçamentos eleitoralistas e gastadores, que obrigaram à intervenção do FMI em 1983. Não esqueço o seu trajecto como primeiro ministro e a forma como deixou de preparar o país para o impacto dos acordos do GATT, ou como se congratulou com o acordo final, obtido no Uruguai em 1993 e que acabou por significar a morte a prazo da indústria têxtil portuguesa sem qualquer contrapartida válida. Não esqueço também que foi com ele que disparou o assalto partidário em larga escala aos cargos e empregos do Estado, ou que foi durante as suas maiorias absolutas que se desperdiçaram os milhões e milhões de contos com que a torneira da CEE inundou Portugal.
Poderia aqui elaborar sobre o anedotário da sua história como político, desde a rodagem ao carro que o levou ao congresso da Figueira da Foz à fatia de bolo-rei mais famosa da nossa história, passando pela demonstração da sua incultura, sucessivamente repetida, ou pelos vários e grotescos tabus, mas prefiro cingir-me às coisas verdadeiramente graves.
Não esqueci ainda a crise económica em que entrávamos quando foi eleito presidente da república e como ele prometeu que com a sua experiência e conhecimentos a iríamos ultrapassar. Por isso o discurso com que hoje (terça-feira) nos brindou em horário nobre não passou para muitos de um “déjá vu”: estávamos como estamos em crise, o futuro aparece (cada vez mais) negro e Cavaco Silva promete salvar-nos, com a sua experiência, a sua personalidade e os seus conhecimentos.
Mas porque devemos acreditar nele outra vez? Afinal de contas tem formação em finanças, de que foi professor catedrático (embora sem obra de vulto publicada, ao contrário de, por exemplo, Sousa Franco), foi primeiro-ministro e apresentou mais de dez orçamentos, tendo sido obrigado a negociar pelo menos um, quando teve um governo minoritário. Tem acesso às contas públicas e a toda a informação disponível sobre o estado do país, tem a oportunidade, semanal, de discutir com o primeiro-ministro os assuntos mais urgentes e mais importantes – e de o esmagar com os seus conhecimentos, personalidade e experiência. Mas o pior é que o estado a que chegámos era obrigatoriamente previsível para ele há muito tempo, e por exemplo quando o governo, demagogicamente e com objectivos eleitoralistas, aumentou os funcionários públicos e baixou a taxa de IVA em 2009. Ele sabia, tinha de saber, que este orçamento destruidor da nossa economia e de milhares de empregos era inevitável e nos iria ser imposto mais tarde ou mais cedo e que o facto de ter sido mais tarde apenas piorou as coisas, mas preferiu ficar calado.
Se tudo isto é verdade, e se foi também responsável por o país chegar a este lamentável estado, porque raio devemos acreditar nele outra vez?
Por: António Ferreira