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Paliativos

Bilhete Postal

Um espaço de corredores enormes, com portas todas iguais, mas não é um hotel, não é um lugar de encanto, não é um sítio onde se chega por querer. Arnaldo fica no 22 e Ernesto no 53. Têm o hábito de sair juntos. Fumam juntos. Acompanham-se ao café frente ao lar. Ernesto foi operado a um cancro e sabe que abriram e fecharam sem remédio. Arnaldo fez quimioterapia e não se curou. Não falam da morte e não falam de mais nada. Os dois caminham juntos e passeiam diariamente. Podiam contar-se as palavras. Antes já caminharam com o Nelson e com o Rodrigo e falaram com a Teresa Couceiro. Todos aqueles morreram e eles morrem em breve, como os mil mortos que contam à volta deles. Não resta ninguém além desta cumplicidade de andar lento, desta incerteza de irem os dois. Amanhã quem sabe. E não falam, que assim a morte não os vê. Os lugares de doentes terminais são uma fórmula inversa da família, são uma realidade que nos expõe falhos, nos revela num paradigma do inumano, do insocial. Ernesto deixou as memórias numa casa onde não voltou. Arnaldo vendeu tudo e comprou este lugar onde não caminha só. Outros vizinhos não têm a dignidade da memória, não têm sequer a possibilidade de sair da cama, olham a distância e não choram. Ernesto está num quarto com mais três homens. Nenhum geme, nenhum fixa a TV, nenhum carrega na campainha. São plantas gente, são corpos de onde não brotam flores e Ernesto todos os dias vai ver se algum resiste, se algum se apaga. Veio para aqui esperar a sua vez e testemunhar esta guerra dos dias contra a morte. Não fala porque falaria disto e isto não é viver. Caminha com o Arnaldo e recorda a Teresa, o Nelson e o Rodrigo que tanto gostava de futebol.

Por: Diogo Cabrita

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