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Os últimos viajantes da Linha da Beira Baixa

Ano após ano, o troço entre a Guarda e a Covilhã vai perdendo passageiros

São 18h30 em ponto e o chefe de estação dá o apito que assinala o início da viagem. Deixamos a Guarda e rumamos à Covilhã pela linha da Beira Baixa. Aqui não passam comboios rápidos, a electrificação é uma miragem e, ano após ano, os passageiros são em menor número.

No total, são 47 quilómetros, percorridos em 1h15. A linha segue impetuosa, implantada a meio das encostas das sucessivas serranias. Ao lado, numa directriz paralela, serpenteia a A23: por ali demora-se menos de meia hora a chegar à Covilhã. O traçado é sinuoso e faz-se entre os 20 e 60 quilómetros por hora. O ritmo da automotora Allan (que foi às oficinas do Porto fazer um “lifting” e voltou “modernizada”) apenas é quebrado pelas cinco paragens que separam as duas cidades. Estações e apeadeiros mergulhados no mais profundo silêncio e abandono, importunado pela passagem, seis vezes por dia – para cima e para baixo – da vagarosa carruagem. Até Maçaínhas viajamos a 50 quilómetros por hora, seguimos para Caria a 40 e depois a 60 – um luxo – até à Covilhã. Nas 10 pontes que fazem parte do percurso, a velocidade é sempre reduzida para 20 à hora.

Para ir e vir, a caprichosa Allan, com 94 lugares sentados, “bebe” 100 litros de gasóleo.

Assim que começa a viagem, entretemo-nos a observar a tripulação.

Ana Domingos, de 12 anos, é a primeira passageira a instalar-se. Viaja sozinha e faz o trajecto às sextas-feiras. Estuda no Colégio da Cerdeira e a automotora é a forma mais «simples» para chegar ao seu destino, Belmonte. Paga 3,01 euros pela viagem, «valor mais em conta do que se andasse de autocarro», garante. Mas há mais vantagens: «Gosto de andar de automotora, a paisagem dá para descontrair e a viagem faz-se muito bem», sublinha. Para Belmonte seguem também Célia Santos, de 36 anos, e Alcina Louro, de 65, mãe e filha. «Um problema de saúde impossibilitou-me de conduzir, por isso tivemos de optar pelo comboio», adianta a primeira. Mas avisa logo: «Caso contrário íamos de carro». Apesar de serem familiares de um ex-ferroviário – o que lhes garante viagens gratuitas –, não é habitual usarem o comboio e, muito menos, a automotora. «O grande problema são os horários, que estão completamente desfasados da realidade», considera Célia Santos. «Desde logo, porque a primeira automotora que faz o percurso Covilhã-Guarda sai muito cedo [5h53 da manhã]», lamenta. Por essas e por outras, a melhor solução é mesmo a A23, garantem.

«Sobram as pessoas mais idosas das aldeias aqui à volta, que não têm meio de transporte próprio e se vêm forçadas a optar pelo comboio», acrescentam. Galgamos três bancos para ensaiar conversa com João Gil Paiva. Tem 48 anos e a carta de condução apreendida. «Motivo principal» para seguir na pachorrenta automotora até à Benespera. A viagem é curta, mas morosa. Só que «mais barata», lembra. Nas bilheteiras da estação da Guarda deixou 1,21 euros. Se fosse de autocarro pagaria «seguramente mais de dois euros», explica. Na Benespera, e apesar do abandono a que foi votado o apeadeiro – sobranceiro à aldeia – ainda se vive «o espírito» dos caminhos-de-ferro. «Muitas vezes, aos fins-de-semana, juntamo-nos um grupo grande da aldeia e metemo-nos no comboio, só mesmo pelo prazer», revela. Ao lado segue Daniel Evangelista. Há cinco anos que faz o percurso, uma vez por mês. «É sagrado», assevera. Vem de Vilar Formoso, onde trabalha na construção civil, e seguirá até à Covilhã para depois embarcar para Alpedrinha (Fundão). Este percurso terá de ser feito de carro, porque o último comboio do dia não oferece ligação para lá da “cidade-neve”. Este é, aliás, um dos aspectos mais contestados pelos utentes da linha. Depois da última revisão dos horários, em Abril do ano passado, não há ligação da Covilhã para Castelo Branco nas automotoras da manhã e da tarde.

Entre Caria e Maçaínhas ainda há carris de 1893

«A linha não tem passageiros, atravessa uma zona desertificada e tem a fatalidade histórica de ter os apeadeiros longe das aldeias, o que não é prático», refere Hélder Bonifácio, do Grupo de Amigos da Linha da Beira Baixa – 6 de Setembro. «A linha está arcaica e o principal problema está na velocidade do automotora. Quando o troço foi inaugurado, em 1893, havia um comboio rápido que percorria o trajecto demorando o mesmo tempo que actualmente», acrescenta. Para o responsável, os caminhos-de-ferro da região «só ganharão no dia em que se aumentarem as velocidades». De resto, Hélder Bonifácio não poupa críticas à forma como a REFER tem vindo a conduzir a modernização na Linha da Beira Baixa: «Passou-se de comboios a diesel para comboios eléctricos, suprimiram-se passagens de nível e melhorou-se a sinalização e só isto», afirma. A viagem inaugural na linha da Beira Baixa ocorreu há 114 anos, no dia 6 de Setembro de 1891, quando o rei D. Carlos fez o percurso entre Abrantes e a Covilhã. Só em Maio de 1893 a linha foi concluída com a abertura do troço Covilhã-Guarda. Ao longo de 11 quilómetros deste último troço, entre Caria e Maçaínhas, ainda há carris originais, segundo Hélder Bonifácio. «Não admira, por isso, que a velocidade máxima permitida seja ali de apenas 40 quilómetros por hora», sublinha. A electrificação e melhoria da linha até Castelo Branco foi inaugurada em Julho pelo primeiro-ministro, José Sócrates. Na ocasião, foi anunciado que a modernização nos restantes 120 quilómetros, até à Guarda, estaria concluída no ano passado, num investimento total anunciado superior a 75 milhões de euros.

Rosa Ramos

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