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Os tutores do povo

São conhecidos o tempo e as razões pelas quais a chamada “Constituição Europeia” foi, justa e oportunamente, chumbada pelos franceses e holandeses. A posição de ambos os países levou a que tal documento fosse posto de lado. Definitivamente. Aos britânicos nem foi preciso pronunciarem-se. Bastou-lhes aproveitar e agradecer a oferta.

Todavia, o próximo presidente francês, sem dúvida o conservador neo-liberal Nicolas Sarkozy, a sair das eleições de 6 de Maio, veio introduzir um elemento novo. Antes que o relatório dos “sábios”, um grupo de peritos encarregado de abordar as hipóteses de ultrapassagem da crise, esteja terminado e seja apresentado no Conselho Europeu de Junho do ano corrente, sob a presidência alemã, aquele político lançou a ideia de fazer na “Constituição” uma operação de corte e costura: aproveitar o texto existente e que possui 448 artigos, conservar-lhe, essencialmente, as questões institucionais ( o que reduziria o texto a pouco mais de uma centena de artigos) e fazer seguir para aprovação. Saliente-se que esta ideia de um mini-tratado foi bem aceite em Londres, Berlim e Haia. Esta estratégia teria, segundo o seu arquitecto, uma tripla vantagem: a Europa seria mais facilmente governável, do ponto de vista institucional; o texto poderia, mais rapidamente, entrar em vigor; sobretudo, poderia o documento ser adoptado sem recurso ao referendo. Nicolas Sarkozy teria, certamente, na lembrança o não francês e holandês à “Constituição”.Teria, também, provavelmente, na memória as dificuldades verificadas na ratificação do Tratado de Nice e do Tratado de Maastricht, em 1992. Com efeito, os franceses aprovaram-no tangencialmente, enquanto que na Dinamarca e na Holanda foi necessário recorrer a um segundo referendo. Digamos, por isso, que, pelo menos em alguns aspectos de capital importância, os políticos e o povo nem sempre têm comungado das mesmas ideias. Em Portugal, quem esteve minimamente atento a estas coisas de aprovação do Tratado de Maastricht, lembra-se que foram contactados dez parlamentares a quem se colocaram outras tantas perguntas. O único deputado que, na altura, soube responder foi o Dr. Rui Rio, hoje Presidente da Câmara Municipal do Porto. Se quiséssemos extrapolar, diríamos que nove em cada dez deputados portugueses desconheciam o texto que aprovaram. Tudo isso tem, apenas, o valor que se quiser atribuir-lhe, responderão. É verdade! Mas não deixa de ser sintomático!

Nem de propósito. O Sr. Prof. Cavaco Silva foi um destes dias a Riga lançar convite a todas as forças políticas portuguesas. Que meditem, “serenamente”, na melhor forma de ratificar o próximo tratado. Parece que na base desse convite estaria a dúvida sobre a bondade da ponderação quanto ao compromisso com a realização de um Referendo. Ora a participação num Referendo é um direito de cidadania que todos devemos exercer. E ninguém, ainda que se trate de um Presidente da República, poderá confiscar esse direito de participação.

Eu, que também pertenço ao grupo daqueles que nunca se enganam e raramente têm dúvidas, entendo que o referido compromisso, sendo a única solução fiável e adequada ao caso, deve, também por isso, ser levado até ao fim.

Longe vão os tempos em que os partidos políticos eram grupos de filiados ideologicamente interessados, de gentes com ideias mais ou menos partilhadas, em que bases e cúpulas estavam muito próximas, ou se esforçavam por isso. Hoje, constituem meras empresas de ganhar votos, onde, cada vez mais, se verifica um claro divórcio entre o partido e as pessoas, as bases. O único objectivo comum válido é ganhar votos para ganhar lugares. Para que haja possibilidade distributiva. Também nesta matéria deram entrada valores como a produtividade e a competitividade.

Recordemos que, em 2005, todo o espectro político concordava com a realização do referendo, sendo que, tanto oposição, como maioria, defendiam o sim, mesmo antes de conhecida a pergunta que iria ser levada a sufrágio popular.

Passados, apenas, dois anos, talvez porque temporariamente libertos da pressão do calendário eleitoral e, sobretudo, das suas consequências, parecem hesitar. Alguma Comunicação Social admite mesmo poderem ter existido contactos entre os líderes dos maiores partidos políticos no sentido da reavaliação do processo de ratificação. Mais: as negociações do novo tratado estarão, tudo leva a crer, em alta no segundo semestre de 2007, altura em que Portugal ocupará a presidência da União. Continuando a ser “bom aluno”, foi esta a designação que, em certo momento, mereceu o comportamento do nosso país, poderia muito bem Portugal admitir que a conclusão do Tratado contivesse uma cláusula formal, traduzindo um compromisso quanto à forma da ratificação. (continua)

Carlos de Sousa, Licenciado em Direito e Pós-graduado em Direito Europeu

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