O Governo acaba de aprovar uma proposta de lei anti-tabaco que, a ser aprovada no Parlamento, porá um ponto final na matéria. O país ficou pois a saber que o Ministro da Saúde tem desta uma noção próxima de “normalização sanitária”, ou pior. Mas veja-se melhor o conteúdo da lei. Desde logo, concordo que se interdite a venda de tabaco a menores e o seu consumo nas escolas. Só que, a versão primitiva da proposta – que proíbe o consumo em qualquer estabelecimento de restauração ou diversão e dispensa os centros de saúde terem consultas para quem quer deixar de fumar – foi aquela que veio a ser aprovada. Ao contrário do que se esperaria, após o recuo do Ministro nesse ponto o ano passado. Já antes, em http://bocadeincendio.blogspot.com/2006/08/os-malefcios-do-tabaco.html tive ocasião de criticar este caminho agora formalizado pelo Governo. Com argumentos para os quais remeto. Temos então um novo Volstead Act (mais conhecido como Lei Seca) para o tabaco. Sob pressão dos sectores mais fundamentalistas e histéricos. Onde pontuam um ou dois médicos e ruidosos activistas. Que gostam de aparecer na TV com um discurso neo-pidesco em relação ao que o cidadão deve ou não fazer para combater o seu deficit sanitário. Até vir a ser higienicamente perfeito, genitalmente irrepreensível, civicamente insuspeito, doce serventuário do novo eugenismo em marcha. O Estado vem pois reforçar o controle de comportamentos por definição privados e a limitar a liberdade de circulação de quem fuma. Para quem defende que os poderes públicos se devem abster de se intrometer naquilo que os indivíduos consomem ou deixam de consumir, como vivem, com quem, etc., como é o caso do escriba, esta lei proibicionista é intolerável. Para além de vir a afectar significativamente a indústria hoteleira. Pelo que, tudo farei para ir preso da próxima vez que puxar de uma cigarrilha “Cohiba”, no final de um jantar memorável num dos meus restaurantes preferidos. A defesa da liberdade pode passar por este caminho. A questão é séria e não pode ser deixada a incompetentes e a demagogos.
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Há dias recebi uma daquelas chamadas telefónicas a que quase todos já nos habituámos: alguém nos quer vender um produto ou serviço, ou então, em jargão publicitário, mais uma “prospecção de mercado”. Do outro lado, uma menina assaz simpática e nada impaciente questionava os meus hábitos quanto ao consumo de café e, acessoriamente, de chá. A insistência era posta no hipotético conhecimento da existência de milagrosas “pastilhas” de café colocadas na máquina expresso caseira. Percebi logo que se tratava de uma campanha de “desnatagem”: um produto inovador, que requer uma desabituação de modelos aceites pela esmagadora maioria dos consumidores, necessita de um halo de simpatia ou prestígio para persuadir um número considerado razoável, para ser considerada a aposta decisiva do lançamento massivo no mercado. Pois a “entrevista” estava a correr muito bem até ao momento em que, depois de fornecer alguns dados pessoais – deles excluído o nome, é claro – a tal menina me questionou acerca do número de pessoas do agregado familiar. Aí é que o caldo se entornou… “Agora é uma pessoa que são muitas”, lancei. “Agora? Muitas?”, “Sim, mas as outras estão sempre presentes…” Juro que, nesta altura, se ela achasse que eu era um epígono de Fernando Pessoa, compraria as simpáticas pastilhas até ao fim da vida. “Mas que outras, quantas?” “Todas de quem gosto. Algumas já viveram há dois mil e quinhentos anos…” “Bom, quer responder ou não?” “Sabe, isto é sazonal. Na primavera prefiro umas e no Inverno outras”. Nesta altura, a inquiridora devia estar a pensar mudar de emprego. Atirou então, num lance decisivo, onde se adivinhava uma ânsia desesperada de “normalização” e de “senso”: “Mas é solteiro ou casado?” Perante um assunto civil de tal magnitude, acorreu a prudência, a tal que, para uns é boa conselheira e, para outros, um oráculo mental (Vd. Baltasar Gracián, “A Arte da Prudência”, 1647). Mas logo a mandei para trás, em parte por causa do insuportável ar beato com que se apresentou. E então, veio o fulgor da recusa magestática do tempo, só ao alcance de um pirata ou de um louco. Que perpassou como um véu no meu espírito:
“Sabe, nunca tinha pensado nisso. Se as pastilhas puderem ajudar… Até pode, entretanto, dar-me o seu número de telefone…”
Por: António Godinho