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Os argonautas pacíficos

Opinião

Após semanas embrenhado em literatura sobre metodologia científica de observação indirecta senti-me tentado a iniciar as férias de Verão com uma fuga à rotina. Foi assim que decidi percorrer as clássicas técnicas românticas dos antropólogos da primeira metade de Novecentos, nomeadamente a observação participante, para conhecer alguns dos povos autóctones (comummente designada por “selvagem”) e a sua organização social neste território vasto que é o continente português.

Na impossibilidade de viajar até à Feira Nacional do Cavalo Lusitano (Novembro, Golegã) e por não ter assistido ao Congresso Nacional do PSD (Junho, Guimarães), restavam-me agora as reservas territoriais das claques de futebol e dos concertos de Verão para levar a cabo o meu propósito de observar algumas tribos no seu estado mais autêntico (comummente referido como “selvagem”). Como a Liga está a um mês do início, a escolha recaiu sobre os festivais de música. Informado pelos serviços da ADSE que o tratamento para a demência auto-infligida não é comparticipado, decidi visitar apenas um deles, realizado no acampamento de Valhelhas.

Bronislaw Malinowski acreditava que todos os componentes da vida social de um povo se integram num sistema coerente e equilibrado. Foi com este pressuposto funcionalista que cheguei ao local do evento. As autoridades locais aplicam as normas próprias da tribo sem interferência da lei geral, numa aplicação directa do sistema multicultural inaugurado pela política canadiana há décadas. À entrada da reserva, a polícia portuguesa não exige passaporte nem faz revista aos visitantes. A tribo tem forças de segurança próprias, que só permite a entrada a quem esteja devidamente vestido com a peça de vestuário indispensável na cultura festivalesca: a pulseira. Tal como alguns povos da Melanésia, que exigem como código de vestuário apenas uma corda atada na zona da cintura, também nos concertos um dos pulsos tem de estar coberto por uma pulseira (fornecida à entrada do recinto), de cores diferentes, o que permite aos conhecedores desses códigos simbólicos o reconhecimento dos visitantes pontuais e dos habitantes da colónia. Além da obrigatória, há habitantes que acrescentam outras pulseiras, como forma de adorno, muitas vezes cobrindo metade do antebraço. Esta prática é considerada uma forma de demonstração da paciência que se consegue ter para encontrar belos artefactos no meio das bugigangas nos mostradores das lojas.

Ainda sobre o vestuário, é importante referir que a tribo dos festivais usa peças que cobrem pouco o corpo ou bastante largas, quer pelo clima quase tropical a que está sujeita, quer pela necessidade de se movimentar e de trocar de roupa com rapidez.

A comunicação entre os habitantes locais é feita sobretudo através de mensagens de texto, uma vez que o ruído ambiente é imenso e a escrita facilita a compreensão. Embora sejam escritas, a gramática e a semântica do dialecto local são pouco elaboradas, porque esta comunicação visa fundamentalmente suprir as pequenas acções do quotidiano, como indicar direcções, saber do paradeiro das pessoas da sua linhagem ou para interacção com objectivos de carácter sexual.

Como nos ensinou Malinowski, a função do etnógrafo é captar o ponto de vista do nativo, a sua relação com a vida, compreender a sua visão do seu mundo. Um relativismo cultural epistemológico que me parece aceitável. A GNR presente à entrada, como já referi, aceita este princípio. Para minha satisfação, também as autoridades locais são tolerantes com os hábitos distintos dos visitantes em relação à população autóctone. Por exemplo, conhecendo os hábitos de consumo de ervas e outras substâncias através da inalação por parte dos membros da tribo, temi ser revistado à entrada e ser impedido de prosseguir por não transportar comigo uma quantidade mínima exigível pelas normas locais. O consumo das substâncias é uma importante forma de socialização comunitária. Os membros do grupo, muitas vezes sentados no chão, formam um círculo e vão passando de uns para outros os produtos consumíveis, devidamente embrulhados num papel próprio para o efeito. É talvez uma simplificação do sistema de troca Kula, o conhecido sistema de oferendas em que participam os habitantes das ilhas Trobriand, mas sem necessidade de percorrer o Pacífico. Nos festivais, este círculo adquire também uma função cerimonial de integração e comunhão. Também a ingestão colectiva de um líquido sagrado, um composto derivado da fermentação da cevada e outros cereais, assume as funções anteriores, bem como facilita a aproximação entre membros que não pertençam ao mesmo grupo de linhagem. A alimentação da tribo é feita à base de pão, acrescido sobretudo de alimentos em conserva ou produtos de carne de porco (como hambúrgueres e salsichas).

Acrescente-se que a população da reserva é muito jovem, onde praticamente não há adultos acima dos 30 anos. As taxas de abandono da reserva por parte dos adultos são muito altas, talvez devido às más condições de higiene e da dificuldade de acessos. Há pouco mais de meia dúzia de casas de banho para toda a comunidade e as ruas que ligam os principais pontos da reserva são em terra batida. Grande parte dos habitantes da tribo na idade adulta contacta com o mundo ocidental (ou pelo menos com a sua versão soft portuguesa) quando começa a trabalhar e abandona gradualmente o estilo de vida genuíno das tribos festivaleiras, passando a frequentar resorts nas Caraíbas ou praias na Caparica.

Durante estes dias, esteve erguido um estrado gigante no qual se sucederam vários dignitários estrangeiros, que ali subiram para debitar mensagens políticas ou apenas imbecis, contra a energia nuclear ou para louvar a Jah. No ar, vindo de algum lado, um barulho constante de instrumentos musicais.

No fim de cada encontro, as tribos e clãs mudam-se quase por inteiro para uma outra reserva, um outro momento de comunhão, circulando pelo país numa viagem épica como Jasão e os seus companheiros. Como já vimos, o círculo é um dos símbolos mais importantes da componente mitológica deste povo. É assim a vida de uma das espécies protegidas da fauna lusitana no decurso do Verão. Durante o Inverno hibernam nas escolas secundárias.

Nuno Amaral Jerónimo

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