Há uns tempos veio parar-me às mãos um email que teve o condão de me fazer recuar à minha infância e juventude. Tinha por título : “Como pudemos sobreviver?” e recordou-me o que era o nosso quotidiano, nos idos anos de setenta e oitenta.
Nesses tempos, íamos para a rua brincar com a condição de voltar antes de anoitecer e os nossos pais, muitas vezes, não sabiam onde estávamos, pois não existiam telemóveis; tínhamos aulas só de manhã e os poucos que tinham aulas à tarde, iam almoçar a casa; não tínhamos curricula com 15 disciplinas, como acontece no 3º ciclo e tínhamos, de vez em quando, direito a uns feriados proporcionados pelos nossos, moralizados, professores. Não existiam as, castradoras, aulas de substituição que apenas servem para criar mais aversão ao sistema e aos seus intervenientes. Éramos bem mais saudáveis do ponto de vista psicológico, mas também do ponto de vista físico, uma vez que não existiam Playstation, Nintendos ou Internet e os computadores eram apenas acessíveis aos mais abastados e tinham memórias RAM, cuja capacidade não serviria, actualmente, para guardar uma simples fotografia. Como não tínhamos nada disto, passávamos mais tempo na rua, com os amigos, a brincar a coisas tão, aparentemente, ridículas à luz dos tempos modernos, como à macaca ou aos “cobóis”, brincávamos, também, às escondidas, a saltar à corda e, claro, os rapazes e as maria-rapaz jogavam futebol, no meio da rua, com duas pedras de cada lado a servirem de baliza que, com paciência, retirávamos sempre que passavam veículos. Não se falava de obesidade, apesar de comermos doces à vontade, pão com manteiga e bebidas com o “perigoso” açúcar. Os “gordinhos” (não confundir com os gordos balofos MacDonaldianos ou PizzaUtianos) eram raros, mas ainda assim, saudáveis e tudo porque éramos super-activos. As calorias que entravam a mais, morriam logo a seguir, nas brincadeiras que aconteciam nas belas tardes-noite de Primavera e Verão.
Na escola havia bons e maus alunos, os primeiros passavam e os outros, às vezes, não, mas não era por isso que, estes últimos, iam a correr ao psicólogo com a intenção de serem rotulados de NEE’s e, assim, poderem passar a usufruir de um estatuto que lhes permitia nunca mais se esforçarem, mas ainda assim passarem de ano. Isto não era possível, simplesmente, porque o facilitismo ainda não estava instalado nas escolas, por decretos governamentais. Os repetentes, tinham vergonha e, no ano seguinte, sentiam o peso da responsabilidade e passavam. As modas da hiperactividade resolviam-se, às vezes, com uns bons puxões de orelhas e/ou uns castigos (não ir ao intervalo era o maior de todos); a dislexia era praticamente inexistente porque se abusava, e bem, dos ditados e das cópias dos textos, treinando, desta forma, a memória auditiva e visual, pelo que se davam muito menos erros (era o princípio da inspiração pela transpiração); como não havia telemóveis escondidos nos bolsos ou na mochila, os poucos focos de desconcentração centravam-se no(a) colega pelo(a) qual tínhamos um fraquinho ou numa ou noutra maldade que, muito à socapa, fazíamos aos parceiros. Por isso não existiam problemas de concentração “patológicos”.
A primeira vez que saíamos à noite sem os nossos progenitores acontecia, normalmente, a partir dos dezasseis anos. Íamos a um bar, onde fazíamos render, até à exaustão, o par de imperiais que tínhamos dinheiro para comprar. Não existiam os “shots”, que permitem aos jovens de hoje, apanhar a maior bebedeira, no mais curto espaço de tempo e dinheiro. As discotecas abriam às 22h, a pista de dança, à meia-noite e os “slows” (normalmente baladas rock) vinham já para o finzinho da noite (1.30-2h) e eram aproveitadas para convidarmos a(o) amiga(o) com quem tínhamos trocado olhares durante toda a noite, pois não havia “msgs grátis” em telemóveis, para fazerem o trabalho dos nossos sentidos. Terminada a noite, por volta das duas da manhã, regressávamos a casa, a pé, e sem qualquer receio de rapto ou violação, porque nesse tempo, os media eram a RTP 1 e RTP 2, e dedicavam-se a dar “verdadeiras” notícias e não a criarem-nos o sentimento de insegurança, que está, hoje, omnipresente e que não nos deixa, nem aos nossos filhos, andarmos descontraídos na rua.
O grande erro actualmente, é não se deixar espaço, nem tempo, para as crianças brincarem. Os pais e a escola contribuem para este défice lúdico pois passam a vida num lufa-lufa com as suas crianças de casa para a escola, da escola para o ballet, do ballet para o karate, do karate para a natação, da natação para o piano, do piano para casa e… para a cama. Sobram actividades nesta equação educativa, mas faltam as verdadeiras e despreocupadas, brincadeiras.
Enfim, foram tempos de liberdade, fracassos, sucessos, direitos e deveres; no entanto aprendemos a lidar com tudo isso sozinhos. Acima de tudo, conseguimos desenvolver a nossa personalidade. Conseguimos sobreviver!
Por: José Carlos Lopes