O recente escândalo dos “Panama Papers” veio trazer de novo à liça a questão dos offshores e da iniquidade na divisão do esforço fiscal entre uma pequena elite muito rica e uma maioria de remediados e desenrascados.
Não sou especialista em questões económicas, financeiras e muito menos fiscais. Mas pertenço à imensa mole de escravos modernos que se arrastam toda uma vida para sobreviver com alguma dignidade, à sombra de injustiças de que tantas vezes nem sequer percebemos a dimensão. Essa dor crónica teve o condão de me aguçar a sensibilidade para estas coisas, compensando a minha ignorância sobre os pormenores e os tecnicismos fiscais com uma elevada atenção à mímica corporal e à demagogia de certos agentes políticos que sobre o assunto agora se pronunciaram.
Por exemplo, alguns políticos criticaram a putativa violação do segredo bancário que surgiria como inevitável consequência de quaisquer medidas efetivas para acabar com estes autênticos antros de criminalidade económico-financeira. Curiosamente são os mesmos políticos que já não se importaram com a violação do mesmo tipo de segredo quando, há algum tempo, se discutiu a alegada prática de algumas fraudes no âmbito da atribuição de prestações do rendimento social de inserção inferiores a 200 euros/mês…
Este tipo de reação, altamente cínica, é mais uma acha para a fogueira que consome o mundo moderno, acicatando conflitos a partir de uma cada vez maior desigualdade e injustiça à escala mundial. É intuitivo que a intenção desta gente é que nada mude. E que se tiver mesmo de mudar, que seja ao ritmo de um passo para a frente e dois para trás. E é aqui que surge a expressão “arbitragem fiscal” como contraponto à proposta de exterminação dos offshores. Para eles não se pode acabar com os offshores, mas apenas com as atividades criminosas que por lá se praticam, uma vez que também existem coisas boas e legítimas, como se pretende que seja a tal “arbitragem fiscal”.
A mim, cidadão simples e sofredor, parece-me que “arbitragem fiscal” é mais uma eufemística forma de se permitir a fuga aos impostos a partir de chico-espertices suportadas em leis feitas à medida das necessidades dos ricos e poderosos. Determina o bom senso que quando uma empresa pratica a sua atividade num país, é nesse país que deveria pagar os seus impostos. Não é certamente no Panamá, nas Antilhas Holandesas ou na Ilha de Man. Por isso, para mim, os offshores deveriam simplesmente acabar, obrigando toda a gente a pagar os seus impostos da mesma forma como eu pago os meus.
Bem sei que para os ricos deste mundo o dinheiro não tem cheiro nem cor. Mas de alguma forma tratam-no como um perfume muito caro, escondendo-o da criadagem em que tornaram o resto do mundo que os sustenta. Como aquilo que se esconde dificilmente se vê, os “Panama Papers” tiveram o condão de se transformar numa espécie de cirurgia que devolveu aos cegos que nós somos alguma visão da realidade que nos rodeia.
Aquilo que se deseja é que desta vez as coisas mudem mesmo. Mas temo que daqui a uns anos ainda andemos a discutir o assunto e que entretanto os donos disto tudo inventem novas modalidades bem mais refinadas para manter a canga sobre o exército de escravos que os sustenta. Entretanto vamos assistir a muita histeria sobre o prejuízo que esta busca pela justiça fiscal vai causar à zona franca da Madeira, uma espécie de bordel da fiscalidade aonde se pratica terrorismo económico, como lhe ouvi chamar há minutos durante um debate num canal de televisão.
O falecido Agostinho da Silva dizia que «a liberdade que há no capitalismo é a do cão preso de dia e solto à noite». Para mim, quando falamos de capitalismo em offshores, é a do cão preso de dia e de noite. Ou, recordando o Zeca Afonso, «Daqui fala o monopólio/Daqui fala o capital/Diga cá senhor ministro/Quanto custa Portugal?». Portugal, hoje, custará menos do que a soma das contas correntes do offshore mais rasca que por aí haja. Ou, quando muito, custará tanto como o perfume que por lá há…
Por: Jorge Noutel