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Offshores, apagões, coincidências e coisas tais

Crónica Política

Os deputados da comissão de inquérito do Parlamento Europeu aos “Panama Papers” não deixaram passar em branco o “apagão” informático de 10 mil milhões de euros da base de dados da autoridade tributária portuguesa, relativos a transferências para offshores comunicadas ao fisco pelos bancos.

As conclusões do relatório final da comissão – recentemente aprovadas, mas ainda a aguardar a votação em plenário em Estrasburgo – citam, pelas piores razões, o caso português numa das emendas. E incluem críticas e referências ao colapso do BES, o banco pelo qual passou a larga maioria das transferências alvo do “apagão”.

A dúvida que vale 10 mil milhões é qual a razão para o apagão se ter muito convenientemente verificado em apenas dois bancos, BES e Montepio, dos catorze que enviaram as declarações. E o facto de, curiosamente, os erros de processamento das transferências para offshores terem sido alvo de “apagão” durante três anos consecutivos! Isso mesmo, foram três anos consecutivos em que ninguém deu por nada…

Nas restantes declarações, tudo funcionou bem, sem erros, e não houve qualquer “apagão”, pelo menos, à luz dos factos que hoje se conhecem. Um autêntico mistério! Ou mais um milagre de Fátima, muito provavelmente.

O culpado do “esquecimento” da publicação destas movimentações financeiras foi Paulo Núncio, secretário de Estado no governo de Passos Coelho. Já no governo atual, o secretário de Estado Fernando Rocha Andrade mandou divulgar os dados de 2014 e os números dos anos anteriores que estavam em falta.

Os primeiros valores referidos aquando desta divulgação não batem certo, quer com os valores (errados) que vieram a ser conhecidos mais tarde, quer com os valores que se consideram corretos hoje. São incongruências a mais! Já há uma diferença em relação aos primeiros valores na ordem dos 900%, o que não deixa de nos aturdir ainda mais.

Mas a grande questão, a questão realmente importante, nem é o envio de verbas para offshores. É conhecer-se a razão para o “apagão” e se houve ou não fuga aos impostos. Na verdade, por muito que tal nos pareça incrível nesta fase do processo, a dúvida ainda persiste. O relatório e o despacho do atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, no qual são elencadas outras desconfianças, já estão a ser analisados no Departamento Central de Investigação e Ação Penal. Aguardam-se por isso as conclusões, mas todos sabemos como estas coisas funcionam em Portugal…

O cidadão comum tem sido submetido a incontáveis sacrifícios e injustiças. Estas revelações permitem-lhe perceber cada vez melhor a crueldade daquilo que lhe foi inglória e friamente destinado. Estes casos são degraus que se sobem em direção a uma espécie de ponto de não retorno mental e afetivo para com aquilo que nos rodeia.

Edgar Morín escreveu um dia, na sua obra “Introdução ao pensamento complexo”, que, e cito, «todas as coisas são “causadas e causantes, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e que todas (se interligam) por um laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes».

Até o cidadão menos culto começa aos poucos a intuir que tudo o que o rodeia não passa de uma teia que o aprisiona, que o manipula, que lhe torna fatal o destino, o sofrimento e a desesperança. E quando falo de tudo, falo da política, dos partidos, dos processos eleitorais, da comunicação social, das leis, dos tribunais, etc.

Não há ferrugem mais corrosiva para a ética republicana do que um estado de espírito destes. A partir desse ponto de não retorno, tudo o que vier à rede encontrará justificação na mente coletiva. É assim, aos poucos, que fermentam as revoluções.

O desespero é, por definição, um estado de alma que vai da aflição ao furor. E quando o desespero impera, o pior erro que se pode cometer, consiste em julgar-se que um pássaro numa gaiola está a cantar, quando na verdade ele está é a gritar…

Por: Jorge Noutel

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