Encontrei-o há alguns anos na rua. Estava com um ar envelhecido, a precisar de restauro, mas a conexão foi imediata. Perguntei-lhe se queria ser meu. Ele disse logo que sim. Ficámos amigos e fomos construindo uma relação de amizade e confiança ao longo de muitos anos. Eu recuperei-lhe a autoestima e ele proporcionou-me momentos de pura diversão. Nestes dez anos calcorreámos campo e mato, abrimos e trilhámos novos caminhos, fomos a muitos encontros com outros amigos e até chegámos a ser capa de revista. Os meus filhos aceitaram-no de imediato. A minha mulher, nem por isso. Mas com o tempo, a “charanga” como ela “criminosamente” lhe chamava, foi sendo aceite e até conduzida.
Refiro-me, como começa a ser óbvio, à relação entre mim e um simpático e velhinho Land Rover Série III, – “Série” para os amigos. Curiosamente foi o diretor deste jornal, o seu anterior proprietário, e fui eu que insisti para que ele mo vendesse. Disse-lhe que ficaria em boas mãos e foi exatamente isso que me disse o novo dono quando mo comprou. Há esta preocupação de deixarmos as nossas máquinas ao cuidado de alguém como nós, para que sejam bem tratadas, como se de filhos se tratassem.
Um carro é muito mais do que metal e borracha, um carro é também as memórias que connosco for construindo, as dos bons e dos maus momentos passados. Vêm-me à memória a “chantagem” com a mulher, antes da compra, quando apareci em casa com os filhos a bordo do Série carregado de pinhas (para demonstrar as possibilidades do “menino”), as viagens memoráveis à neve e ao Alentejo, os obstáculos quase intransponíveis heroicamente transpostos, mas também as partidas pregadas com algumas avarias, mas que nunca o impediram de arrastar-se até casa “ferido”, nunca me deixando a pé.
Depois das maluquices, dos excessos, das provas dadas como um todo-o-terreno, puro sangue, que deu novas Áfricas aos europeus, desbravando mato por picadas e caminhos de terra lamacentos, veio a fase da calmaria, onde um restauro profundo começou por deixá-lo despojado de roupagens e motor. Lá, na oficina de mecânica e pintura, a minha visita semanal era obrigatória para atestar da evolução dos trabalhos e onde acabei, carinhosamente, por pôr mãos à obra e adicionar este e aquele parafuso, rebite ou borracha na fase de acabamentos. O efeito final ficou fantástico e uma Fénix, azul-turquesa renasceu das cinzas.
Continuámos companheiros inseparáveis, como até aí. O Zé era o Série e o Série era o Zé. Aos primeiros raios de sol lá lhe sacava a capota e íamos passear. Para além de nós, os meus alunos adoravam-no e as crianças pequenas miravam-no confirmando que a noção de estética é inata e que o simpático Land Rover azul era mesmo giro e espalhava charme. Mas eu tinha outros planos: a possibilidade de converter um sonho antigo em realidade (possuir outra máquina, Land Rover, claro) e a impossibilidade de vir a ficar com os dois, fez-me trair o meu fiel companheiro e passá-lo para outras mãos. Ninguém queria acreditar. Como era possível? Teria eu ensandecido? “Como foi que se conseguiu desfazer desta máquina?” – disse-me, “sadicamente”, o novo dono com o qual tenho mantido contacto. Sei que ele se tem divertido à grande com o meu Série (que já não é meu apesar de continuar a tratá-lo como meu). Foi para a zona do Alto Douro, onde montes e vales e vinhas para visitar não lhe vão faltar para esticar as rodas. Sei que é o veículo do dia-a-dia do Mário e que tem feito boa figura lá por Murça. Mas também sei que me deixou muitas saudades pois, para mim, sempre foi mais do que um carro. Havemos de voltar a encontrar-nos.
Por: José Carlos Lopes