Chegavam finalmente as férias. A praia talvez, a bicicleta provavelmente, ficar na cama de manhã obviamente, jogar à bola com equipamento novinho a estrear era um anseio natural, mas a maior obsessão e que persistiu ao longo de outras férias de Verão era o túnel. Era aos nossos olhos, grande, a perder de vista, muitos metros, que com as nossas pequenas pernas, tínhamos que andar para ver a luz ao fundo do dito cujo. Abrigado do calor de Verão, escuro como só um túnel pode ser, húmido com água gelada a escorrer das paredes, um cheiro misturado de musgo, aço e óleos.
O nosso divertimento passava pelo medo, mas também pelo gosto de investigar, ou melhor, de explorar. Após o almoço pegávamos nas bicicletas e entrávamos na linha. Alguém colocava a orelha no carril quente. O último comboio havia passado uma hora antes e o próximo ainda demorava umas cinco horas. Tempo não nos faltava. Antes de entrar naquela escuridão explorávamos a casa já sem telhado onde em tempos as máquinas se abasteciam de carvão mineral e de água. Os mais afoitos mergulhavam no tanque gelado, provavelmente, cheio de bichos em decomposição e outros bem vivos. Sempre me faltou essa coragem, mas convivi bem com isso. Os restos de carvão ainda lá estavam, no que em tempos fora o armazém. Numa época em que despontávamos para as “Ciências da Natureza” sabia bem identificar aquele pedaço escuro, mas brilhante e, claro, procurávamos outros minerais, porque quem sabe não estaria para ali uma jazida de ouro.
Imaginava as máquinas a vapor com quatro ou cinco carruagens verdes com bancos de madeira envernizados, a entrar no túnel deixando para trás um rasto de fumo mal cheiroso. Mas ia mais longe e conjecturava acerca das pessoas que o utilizavam. Às vezes imaginava seres sinistros que por ali se apeassem e permanecessem no escuro à nossa espera.
No túnel, os nossos pezitos saltitavam de travessa em travessa ou então em passos de equilibrismo em cima do carril. Os passos eram contidos, bem estudados e ninguém se afastava. O cão que por sinal se chamava “Dog”, era enorme, de ladrar forte, impondo respeito, não nos largava, parecendo perceber o nosso receio. De quando em quando apreciam umas guaritas, que prontamente investigávamos. Nada de novo encontrávamos e seguíamos em busca da luz. Atravessar o túnel demorava uma eternidade.
Mais tarde no pico da adolescência apercebi-me de outras vantagens e de outras explorações, que para aqui não são chamadas.
Encontrada a luz subíamos uma encosta e finalmente chegávamos a uma pedreira que devia ter alimentado a construção. Procurávamos, simplesmente, mais uns fósseis para alimentar a nossa colecção. Era uma felicidade encontrar mais uns caracóis inteiros ou partidos. A colecção não era de ninguém em particular mas de todos, de tal forma que não faço a mínima ideia de quem a guardava. O que importava era o espírito de busca e a sensação de liberdade vivida intensamente. Não havia telemóveis e os pais só sabiam por aproximação onde estávamos. Regressávamos quando nos dava a fome e o sol se inclinava lá para os lados do mar. Fazíamos o percurso inverso por cima do túnel, à luz do entardecer, que ainda ia forte e quente. As árvores davam-nos a sombra, aqui e acolá adivinhava-se os movimentos de uma cobra ou o saltitar de um coelho. As rolas faziam-se ouvir lá no alto dos pinheiros. O sofrimento era ainda maior e as nossas pernas expostas ficavam todas arranhadas no mato. As bicicletas lá estavam à nossa espera. À pressa comíamos alguma coisa e em pouco tempo tínhamos o campo de futebol por nossa conta.
A praia vinha noutro dia se o vento o permitisse. À noite víamos um dos dois canais com programação de férias o que deve ser interpretado como repetições chatas e vontade rápida de ir para a cama, adormecendo a ler um livro de Enid Blyton, sonhando com mais uma aventura.
Qual crise do petróleo, “crash” da bolsa, efeito de estufa, taxas de juro ou outras que tanto nos incomodam.
No túnel já não passa o comboio há alguns anos, estão a requalificar a linha depois de algumas indecisões. Atravessei-o há algum tempo, cheio de nostalgia e de memórias como só os velhos são capazes.
Eram assim as férias, agitadas e indolentes. Mas que bem me fazem ainda quando me recordo…
Por: João Santiago Correia