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O Taxista de Pedro Gomes (12.º C)

PRÉMIO RIACHO – 1º Classificado

À porta do restaurante onde compro o café matinal, preparo-me para enfrentar mais um dia de trabalho em Nova Iorque. O enorme copo de café parece mais frio na minha mão, e apercebo-me do passar do tempo. Aceno para os táxis e, um instante depois, o típico veículo amarelo-torrado pára para que eu possa entrar. Dou indicações ao taxista e começa a típica viagem de «pára-arranca» entre semáforos, até ao destino. A uma dada altura durante a viagem o meu olhar cruza-se com o do taxista e vejo rebentar nos seus olhos uma miríade de emoções. Primeiro observação, depois desconfiança e uma sombra de medo e por fim a aceitação de uma triste realidade. Pensei deixar passar tal reacção mas depois decidi-me a satisfazer a minha curiosidade e questionar o homem. Fui no entanto antecipado, pois, parecendo falar para o ar, o “tipo” disse:

– Hoje dia de azar. Na primeira esquina um contratempo, na passadeira uma ofensa pessoal e ao chegar ao trabalho a perda de uma vida humana. No entanto não se deve culpar pela perda dessa vida, pois agiu correctamente.

– Desculpe, mas as suas palavras não fazem qualquer sentido.

– Acredita no destino?

– Não. Acredito que tenho controlo sobre a minha vida e que sou livre nas escolhas que faço.

– É uma liberdade enganadora, meu amigo. O destino de cada um está traçado e é fatal e inevitável. Espero não estar a aborrecê-lo.

O homem não dizia coisa com coisa e estava certamente a aborrecer-me mas a hipocrisia subjacente ao ser humano estava a subjugar-me, persuadindo-me a ser simpático e a sorrir. Desta vez, não foi, no entanto, bem sucedida. As palavras que me saíram da boca foram sem dúvida o espelho da minha alma:

– Está na verdade a deixar-me irritado. Não acredito no destino nem em dias de azar e, se não se importar, gostaria de sair aqui.

Fez-se silêncio, o homem encostou, eu paguei e iniciei a caminhada até ao trabalho, que felizmente já era perto. Embrenhado em pensamentos pouco dignos, virei a esquina e foi aí que pisei “bosta” de cão. As palavras do taxista ecoavam na minha cabeça enquanto passava o lenço na sola. Amaldiçoei apenas o cão e deixei o destino fora da história. Não seria por um pequeno deslize que aceitaria a verdade de uma entidade superior que controla as nossas vidas, a minha vida. Estuguei o passo ao longo do passeio, por entre a multidão e vigiado por prédios que rasam o céu. Os encontrões, os roçagares e os pedaços de conversa passam despercebidos ao fim de tantos anos na cidade. Avancei para a passadeira a conferir as horas com o relógio. O relógio que supostamente deveria estar no pulso! O relógio de enorme valor sentimental que o meu pai me deixara em testamento! Desta vez a imagem que me passou pela cabeça não foi a do taxista mencionado, as palavras «ofensa pessoal», mas sim um indivíduo com quem troquei nem há 30 segundos um encontrão que classifiquei de casual. Primeiro veio a raiva e a fúria e depois o desejo de vingança. Foi no entanto o impacto da verdade que bateu com mais força. O destino estava de facto a levar a sua avante. E se alguém morresse mesmo aquando da minha chegada ao trabalho? Tinha de evitá-lo. Corri desenfreado, já com a porta do edifício à vista no fundo da rua, ao mesmo tempo que tinha a cruel sensação de que alguém estava a mexer os fios que controlavam a minha vida, como se de uma marioneta eu me tratasse. Ao longe, mesmo em frente ao meu local de trabalho, ocorria uma certa actividade pouco usual. Apercebi-me enquanto me aproximava que era um assalto. Um louco apontando uma pistola a uma jovem exigia a carteira e as jóias. A tensão pairava no ar, uma certa calmaria antes do disparo fatal. Tomei balanço e saltei no momento exacto. Atirei com a jovem ao chão e a bala atingiu nada mais que ar. Olhei-a nos olhos e vi a sua gratidão. Nos meus ela deve ter provavelmente lido uma enorme satisfação e o prazer de vencer o mais implacável dos inimigos: o destino. Parece que afinal os acontecimentos não são tão inevitáveis como o taxista os fez parecer. Levantei-me com a mulher agarrada a mim e olhei em volta para os espectadores do meu acto heróico. Não estavam contentes nem surpreendidos como eu esperava, mas sim assustados e em pânico. Virei-me para trás e observei aquilo em que todos tinham os olhos postos. A bala que eu dei por inofensiva depois de tirar a mulher da sua trajectória acabou por atingir um outro alvo. No chão encontrava-se um rapaz jovem, no peito uma mancha púrpura alastrava ensopando a roupa, e os olhos vítreos fitavam o vazio. Estava sem dúvida morto. A minha vitória fora efémera e o destino implacável nos seus desígnios. As bases da vida como eu a conhecia tinham sido abaladas por um vulgar taxista. O factor destino entrava agora na minha vida fazendo-me sentir encurralado na minha liberdade ilusória.

Durante muito tempo após este incidente tentei compreender como seria possível um taxista saber os caprichos do destino, mas a verdadeira pergunta que nunca deixa de me atormentar é se tudo o que se passou aconteceria se o taxista tivesse ficado calado, limitando-se a levar-me até ao trabalho.

EXPRESSÃO, Maio 08

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