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“O preto da casa Africana”

Entre a polémica com um Museu dos Descobrimentos e a profusão de efusivas evocações da personalidade de Nelson Mandela, lembrei-me de quando me diziam que parecia o “preto da casa Africana” de tão carregada que ia. Nunca conheci o bom do preto, mas sempre achei que devia ser o namorado de todas as “pretinhas” que alguns militares e antigos colonos traziam, caridosa e abnegadamente, de África para ajudar mães e mulheres nas lides lá de casa. Imaginava-os, ao da casa Africana e às “pretinhas”, sozinhos no meio do mato africano, muito assustados à frente de um leão, a ser salvos por heroicos soldados e patrões brancos. Sem pai, nem mãe, os “pretinhos” não podiam ser irmãos, mas, na minha cabeça, haveriam de se encontrar na metrópole para serem namorados. Por essas alturas nunca tinha ouvido falar em escravatura, nem em descobrimentos, mas conhecia muito bem África. Estava lá o pai, a tia, os tios, os primos e os pretos que cuidavam de todos com a ajuda de um pastor alemão.

Um dia, tinha que haver um dia, a família veio, de vez, para a metrópole e choraram muito por lá terem deixado os “pretinhos” e o cão. Em boa verdade, nunca percebi por que não os meteram também nos contentores da mobília, sempre teriam dado uma ajuda a abri-los e a carregar as tralhas da Ratoeira para Celorico da Beira. É que o camião, que trouxe os contentores de Lisboa, não cabia nas ruelas da vila e teve de se pedir à santa que os guardasse atrás de si durante os dias que se levaram a esvaziá-los. Tudo escusado, se os pretos e o cão estivessem lá dentro, pensei.

Meia dúzia de anos depois, Lucien Febvre ensinou-me – ou melhor, Ana Branco ensinou-me que Lucien Febvre ensinara – que a história é sempre feita no presente e a partir das interrogações, ansiedades e problemas com que ele nos confronta e interpretei então o nome de “pretinhos”, do da casa Africana e das de casas de família, como eufemismo. É que, bem vistas as coisas, pouco haverá de mais ideológico e político no sentido mais pleno do termo do que a linguagem. Daí que, penso eu, num Portugal que até tinha abolido a escravatura no séc. XVIII a palavra “escravos” tenha sido substituída por “pretinhos” durante tanto tempo. Maquilhavam-se, assim, as relações de prepotência e racismo para descanso moral das consciências religiosas com que se pretendiam salvar estas “almas” encontradas nos matos africanos. Maniqueísmo que, a julgar pelos recentes argumentos de alguns (pese embora o entusiasmo com que evocam Mandela), perdura até hoje. Só nisto consigo encontrar explicação para que, num país que foi pioneiro do tráfico transatlântico de escravos, haja ainda quem queira preencher essa página da nossa história com a manipulação da verdade.

Se o fazem por ignorância militante, ou pelo recrudescer de uma ideologia de má memória, é coisa que só a história, a dos “Annales”, nos dirá. Mas lá que, às vezes, me parece ver recrudescer na sociedade portuguesa as saudades “dos pretos da casa Africana” e das “pretinhas”, parece.

Por: Fidélia Pissarra

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