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O poder dos media

Razão e Região

A propósito do caso Media Capital, que voltou a ocupar o centro da agenda mediática, depois de ter sido responsável por uma grave crise – o caso Marcelo – que haveria de contribuir decisivamente para a queda do Governo de Santana Lopes, creio ser de grande utilidade reflectir sobre o papel dos media na sociedade. Até porque temos vindo a assistir a uma torrencial produção de textos, por profissionais da informação, sobre os media, onde é evidente uma enorme confusão conceptual. É que, à força de sentirem o enorme poder que têm, demasiados editorialistas, colunistas e jornalistas começam a assumir a sua função como exercício de um mandato de tipo político que, informalmente, a opinião pública lhes teria confiado. A confusão parece resultar de uma errada interpretação do velho papel de «watchdogs», de «cães de guarda» do público. Papel que estaria a ser lido, cada vez mais, como dever de oposição política aos governos. Esta leitura é corroborada por uma prática cada vez mais comum: a tendência crescente dos jornalistas «seniores», ou que se consideram como tal, para o exercício permanente de um poder efectivo que lhes advém quer da capacidade de determinação das agendas política e pública quer da possibilidade de emissão permanente de opinião política crítica e radical. Como se estivéssemos a assistir à emergência de um poderoso e complexo «partido da opinião», capaz de disputar o poder aos tradicionais partidos políticos e de se constituir, por isso, como verdadeira alternativa na emergente «democracia de opinião». A grande clivagem passaria a ser, pois, entre política e media. E o que é curioso é que a velha disfunção a que se convencionou chamar «partidocracia» tem vindo, de facto, a dar lugar a uma nova e mais perigosa disfunção, a «mediocracia». Ou seja, a confiscação do mandato dos representantes pelos partidos tornou-se residual perante a nova e mais insidiosa confiscação do mandato pelos media. O fenómeno é de tal modo poderoso que já levou a que a «legitimidade de mandato» dos representantes – conferida originariamente pelo voto pela duração de um mandato – se transformasse em mera «legitimidade flutuante», agora resultante da acção dos media e da sondocracia. Esta transformação resultou das profundas transformações que se verificaram no Espaço Público. Espaço que passou a estar confiado aos «agentes orgânicos» do sistema mediático quer no plano do controlo do acesso quer no plano da sua gestão empresarial ou da sua gestão comunicacional. Se fizermos uma rápida viagem à história dos círculos do poder ao longo dos séculos, verificamos que do círculo restrito que era a Corte, à qual acediam somente os nobres, se passou para o Círculo dos Partidos, onde o acesso era virtualmente universal (o processo laicizou-se), mas onde a mecânica do poder se mantinha, de certo modo, confinada no interior das sedes dos partidos, embora com a exigência de uma efectiva relação de tipo orgânico à «sociedade civil». Daqui passou-se para o Espaço Público Mediático, onde o acesso continua a ser virtualmente universal, onde (como demonstra Joshua Meyrowitz) desaparece a distinção entre palco e bastidores e onde a relação com a sociedade deixou de ser fundamentalmente orgânica para passar a ser de tipo comunicacional ou simbólica. Foi esta a transição e é neste contexto que podemos explicar a enorme confusão conceptual que se instalou na mente de tantos ilustres directores, editorialistas e colunistas. Vejamos o problema do acesso a estes círculos do poder. No caso da Corte, era condicionado por razões de pertença social. No caso dos Partidos, era condicionado por razões de pertença ideológica. No caso do Espaço Público, é tão virtualmente universal quão condicionado pela idiossincrasia dos restritos círculos do Poder Mediático. Ou seja, nesta nova fase, os media detêm um poder incomparavelmente superior ao que detinham no «Século dos Partidos». Porque a política evoluiu para formas sofisticadas de conquista, conservação e reprodução alargada do Poder, onde o Simbólico passou a dominar decisivamente sobre o Coercivo, sobre a força ou, para usar a imagem de Maquiavel, onde a astúcia da «raposa» passou a contar muito mais do que a força do «leão», sendo que a astúcia tem aqui o sentido de capacidade de construção do consenso em torno das próprias estratégias.

É neste quadro que se pode compreender a confusão cada vez mais frequente entre essa função vital de mediação que está reservada aos media e o excessivo protagonismo político que vêm assumindo os seus «agentes orgânicos». Ou seja, os mediadores, com a força que adquiriram, tornaram-se parte no próprio processo de mediação. O que é um verdadeiro oxímoro. E, sobretudo, democraticamente ilegítimo.

Por: João de Almeida Santos

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