Com a aproximação do ato eleitoral do dia 1 de outubro, dei comigo, pelo meio do ruído da campanha ou talvez por causa dele, a pensar em quanto daquilo que o rodeia não passa de mistificação. Olhemos, por exemplo, para os cadernos eleitorais, que todos pressentimos estarem pejados de um número considerável de cidadãos que faleceram ou que estão a viver noutras paragens.
Como é do conhecimento geral, a população no concelho da Guarda diminuiu, como aliás sucedeu em todo o interior do país. Consultando o site da Pordata, obtemos em 2016 um número de 40.048 cidadãos residentes. Se a estes retirarmos “apenas” os cidadãos menores de…, digamos, 14 anos (só há dados etários até esta idade, permitindo apurar um número de 4.954 jovens), e só estes, o número de votantes cai imediatamente para 35.094. E, atenção, a este valor há que abater ainda um número não apurado de cidadãos entre os 14 e os 18 anos, sem direito a voto. Ora, de acordo com a Comissão Nacional de Eleições, o concelho da Guarda tem recenseados 38.899 cidadãos!
Qual a razão para a manutenção de toda esta ficção numérico-eleitoral?
Obviamente que cada um terá as suas explicações e teorias não faltarão. Mas há uma coisa que é inegável. Num território onde se acumulam fatores estruturais de ordem política e económica que promovem baixas taxas de natalidade, somada a uma elevada emigração e reduzida imigração, todos os números contam, nem que sejam a fingir.
O número de eleitos é calculado em função do número de eleitores. Qualquer sistema eleitoral que permitisse apurar com exatidão e em tempo real os verdadeiros números, fazendo-os cair para valores muito inferiores, teria a consequência de reduzir o número de vereadores e de deputados aos órgãos autárquicos, minguando o bolo a distribuir pela classe política.
Isto diz-nos muito sobre o porquê do estado a que Portugal chegou. Quando a ferramenta fundamental e mais pura do processo democrático – o ato eleitoral – assenta num devaneio pouco há a esperar do edifício que se constrói depois. O que define a democracia não é tanto a forma das coisas que se lhe associam, é muito mais o conteúdo. E, neste contexto, o conteúdo já nasce podre e mal cheiroso…
Não espanta, por isso, que surjam no universo da campanha as mais bizarras propostas, algumas delas tão inverosímeis que custa a acreditar que tenham algum dia sido feitas. Mas, bem vistas as coisas, se o povo acredita que somos 10 ou 20% mais do que na realidade somos, por que razão não há-de acreditar noutras fantasias?
Para além dos costumeiros abusos de toda a ordem, que incluem o péssimo hábito de se misturar campanha eleitoral com a denominada “publicidade institucional” paga há meses com o dinheiro de todos nós, a mistificação dos números e das promessas eleitorais materializa uma realidade antidemocrática que se passeia à nossa frente mas que a maioria insiste em não querer ver.
Esta espécie de farsa surge assim, para o reduzidíssimo número de pessoas obsessivamente atentas a estes pormenores, como redenção para os problemas de um povo que parece gostar de ser enganado. A democracia está por isso reduzida a um processo em que as massas têm os seus direitos pisoteados no dia-a-dia, com um intervalo para uma votação destinada a convencê-las exatamente do contrário.
Somemos a isto a dificuldade de os cidadãos se desligarem efetivamente do sistema partidário, propiciadora em si mesma de um certo tipo de submissão – ainda que involuntária – dos chamados “independentes” ao sistema tradicional, e percebe-se como a farsa é ainda maior do que a maioria imagina.
Não pensava decerto na Guarda, mas não foi por acaso que Drummond de Andrade afirmou um dia que «Democracia é a forma de governo em que o povo imagina estar no poder». Deviam construir-lhe uma estátua! De preferência, numa das nossas rotundas… pelo menos seria um ato de cultura que substituiria os mamarrachos pategos e parolos que por aí existem ou venham a existir!
Por: Jorge Noutel