Francisco Teixeira da Mota
(coluna de opinião publicada na edição de sexta-feira (29/09/2017) do jornal “Público”)
As palavras indignadas que transcrevo foram escritas no jornal O Mirante, no âmbito de uma acção movida por um advogado de uma câmara municipal do norte do país contra aquele jornal e os seus jornalistas, pedindo não só a retirada dos artigos e da fotografia que falavam sobre si na edição online no jornal como um elevado pedido de indemnização:
“Se o ridículo matasse, o advogado da câmara municipal já seria um cadáver há muito tempo. A acção que resolveu interpor em tribunal contra O Mirante e os seus jornalistas é um atentado à liberdade de informar […]. Trago aqui o assunto porque este caso trouxe pela primeira vez dois inspectores da Polícia Judiciária aos nossos computadores da redacção. O advogado queixoso conseguiu que a justiça se mexesse de forma a que não fizéssemos desaparecer dos computadores os textos em que ele se sentia ofendido. O nosso pecado foi termos escrito que o dito advogado, prestador de serviços à câmara municipal, tinha exigido quase meio milhão de euros. […] O que me espanta nesta história é saber que ainda há gente do lado desta gente, habituada a ganhar a vida graças aos políticos amigos, e que vem clamar por justiça por publicarmos uma fotografia sem a devida autorização. Como é que é possível um tipo ter a profissão de advogado, trabalhar para uma autarquia em processos que são públicos e notórios, e depois pedir em tribunal a condenação de um jornal e dos seus jornalistas por publicarmos a sua foto sem lhe pedirmos autorização? O ridículo ainda maior é vivermos num país que tem uma justiça que permite este tipo de oportunismo.”
No tribunal de 1.ª instância, o advogado conseguiu a condenação do jornal e dos jornalistas a retirarem a fotografia e os artigos da Internet e a pagar-lhe uma indemnização no valor de 105 euros por cada hora em que permanecessem artigos e fotografia na Internet a partir da data em que o jornal tinha tomado conhecimento da acção. Para o tribunal de 1.ª instância, o bom nome e a honra do advogado tinham sido ofendidos gravemente, não havia necessidade de o fazer e a fotografia publicada do advogado numa sessão pública da câmara não podia ter sido publicada sem a sua autorização.
Pode-se — inequivocamente — dizer que, nesta comarca, o tribunal tinha um entendimento muito pouco democrático da liberdade de expressão e de informação. Um jornal local, segundo este tribunal, não tem o direito de, em artigo de opinião, criticar de forma violenta e sarcástica a actuação de um advogado avençado da câmara nem de publicar a sua fotografia captada num lugar e evento público. A vingar este entendimento, muito pobre seria a nossa realidade informativa: no limite, só comunicados oficiais e diplomas legais poderiam ser publicados ou textos respeitosos e deferentes, do tipo “Peço desculpa mas vejo-me obrigado a discordar de V. Exa.”.
Recorreram os jornalistas e o jornal para o tribunal da Relação, que considerou que o que era decisivo era saber se os artigos em causa ultrapassavam os limites da liberdade de expressão ofendendo os direitos de personalidade (bom nome, honra, imagem) do advogado. E o tribunal da Relação concluiu que fora lícita a actuação de O Mirante, já que o advogado, ao estabelecer um contrato com a câmara, tinha de esperar e de aceitar a exigência de um escrutínio público mais rigoroso da sua conduta, em particular quanto à gestão de recursos públicos, sendo que a “crítica não exclui a ironia, o humor, mesmo corrosivo e o tom sarcástico”. E absolveu jornalistas e jornal.
Recorreu, indignado, o advogado para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tendo-se debruçado sobre o seu caso, no passado dia 13 de Julho, os juízes conselheiros Lopes do Rego, Távora Victor e António Piçarra. Apesar da ofensa à sua dignidade e dos sofrimentos e prejuízos que o advogado alegava, o STJ manteve a absolvição de O Mirante e dos seus jornalistas até porque, em termos das decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, seguramente que a condenação de O Mirante e dos jornalistas em Portugal viria a determinar a condenação do nosso país em Estrasburgo e a termos de pagar — todos nós, contribuintes — uma indemnização ao jornal e aos jornalistas. Para o STJ, a dignidade humana de que fala a nossa Constituição não abrange apenas a honra de cada um mas inclui, também, o que me parece estar inequivocamente correcto, “a ausência de mordaças”.