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O martelo, a bigorna e o ovo

Crónica Política

A recente polémica acerca do combate à violação do segredo de justiça, envolvendo a possibilidade de realização de escutas telefónicas e buscas profissionais e domiciliárias a jornalistas, fez-me imediatamente recuar mais de dois mil anos.

Clístenes, quando “inventou” a democracia ateniense, cuidou de garantir duas características fundamentais. De um lado, a seleção aleatória de cidadãos comuns para preencher os cargos administrativos e judiciais existentes. O governo era a estrita imagem do povo que o escolhia. Do outro, todos os cidadãos elegíveis eram autorizados a falar e votar na assembleia que estabelecia as leis da cidade-estado. Sem qualquer censura. Claro que desde a altura em que a democracia se exercia desta forma direta, com tudo às claras, muito mudou. Com a adoção do sistema representativo foi-se perdendo esta transparência e aumentando cada vez mais a distância entre eleitos e eleitores. Até cada um desses grupos constituir hoje um mundo aparte do outro. Com as desconfianças que isso arrasta. O que, reconheça-se, é ingénito na natureza humana.

A única cola que ainda mantém estes dois mundos agregados, apesar de todas as imperfeições, é a vulgarmente denominada liberdade de imprensa. Os eleitores alimentam a ilusão de, por essa via, controlarem, pelo menos em parte, os desmandos dos eleitos. Ou seja, daqueles que por estas bandas denominamos de “políticos”.

Isto acontece por uma razão muito particular, que é transversal a todas as democracias. O estado de direito funciona mal, sempre mal. Sobretudo quando se trata de poderosos, o que invariavelmente envolve políticos. Onde houver negociata, vigarice ou roubalheira da grossa, há-de estar um político. Ou alguém aparentado com ele. É tão certo como o sol nascer pela manhã. Em qualquer sociedade.

Por isso a liberdade de imprensa é a vingança dos injustiçados. Ou dos oprimidos, como gostam de dizer os mais panfletários. O político não vai para a cadeia, mas, se eu tiver um motivo para poder chamar nomes à sua mãe, já ninguém me leva a mal.

Claro que a liberdade de imprensa, na guerra que combatemos, é mais do que isso. Mas só os vigaristas e uma elite de cidadãos bem informados o compreende. E os políticos, melhor do que todos. Por isso, anda alguém a tentar dar cabo dela.

É que a ideia de atacar o mensageiro, em vez do autor da mensagem, não é nova. O objetivo é fazer com que os jornalistas se autocensurem, pelo medo. De todas as paixões, o medo é aquela que mais debilita o bom senso. E para uma democracia dos tempos modernos, um jornalista com medo tem tanto bom senso como um ovo.

Gaetano Mosca, um pensador italiano do século passado, achava que a democracia era ilusória e que servia apenas para mascarar a realidade da regra de elite. Considerava que o domínio da elite é a lei inflexível da natureza humana, em grande parte devido à apatia e divisão da maioria da população, em oposição à unidade, à iniciativa e à coordenação das elites. As instituições democráticas não serviriam para mais do que exercer o poder através da manipulação em vez da opressão.

Louis Brandeis, um advogado americano defensor de causas sociais progressistas e autor de “Other People’s Money And How the Bankers Use It”, foi ainda mais longe, afirmando que podemos ter democracia ou podemos ter riqueza concentrada nas mãos de uns poucos, mas não podemos ter as duas coisas. Graças à imprensa livre.

Eu, simples cidadão do mundo e muito menos filósofo, limito-me a achar que cada um destes pensadores tem hoje bem mais razão do que aquela que queria.

Como dizia Sun Tzu, em “A Arte da Guerra”, se o inimigo deixa uma porta aberta, precipitemo-nos por ela. Por isso a vitória está reservada para aqueles que estão dispostos a pagar o preço. Eu diria mais: nos dias de hoje, a vitória está reservada para aqueles que consigam que a porta não passe apenas de um ovo. Ou coisa parecida.

Por: Jorge Noutel

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