O novo governo do Partido Socialista, mesmo sem ter ganho eleições, tem indiscutível legitimidade política e constitucional e é suportado pela maioria de esquerda no Parlamento.
António Costa quis ser primeiro-ministro e mesmo tendo perdido no confronto eleitoral com Passos Coelho, transformou essa derrota numa vitória de secretaria para a qual, com mestria, trabalhou, vendendo a alma ao diabo.
A novidade não é termos um governo socialista, já que governos do PS é o que mais temos visto em Portugal, nem sempre lembrados, é certo, pelo sucesso da sua governação. Aquilo a que o país assistiu, surpreendido, não foi apenas a um exercício de democracia parlamentar, nem foi tão só reflexo da sede de poder socialista, foi sobretudo a concertação estratégica de posições ameaçadas pelas reformas da economia e da sociedade que estavam em curso.
O Partido Comunista perdia no processo de privatização do importante sector dos transportes a posição privilegiada, que a CGTP também detinha, no controle sindical e, por via disso, muito da sua capacidade de contestação de rua. O Partido Socialista, que, ao longo dos seus muitos governos, sempre nomeou, “ocupando politicamente” a função pública no sector da saúde, da educação, da justiça, da segurança social, das empresas e dos Institutos públicos, temia perder na reforma da administração pública dos vários institutos e empresas públicas o poder que detém e em parte já partilha com o Bloco de Esquerda.
Depois de dois anos de política de austeridade, ditados pela situação em que o PS deixou o Estado, agora com a economia a crescer, o desemprego a baixar, as exportações a puxar pela competitividade e um caminho consolidado de redução do défice público, um novo mandato da direita ditaria um conjunto de reformas que transformariam muito do “status quo”, colocando em causa todo um conjunto de interesses instalados da esquerda portuguesa.
Dai o interesse de toda a esquerda, pela primeira vez, em alinhar num acordo de princípios que derrubasse a ameaça da direita e viabilizasse um governo, que, revertendo muitas das reformas, manteria todos os interesses corporativos.
Tratou-se de um acordo, a que se chamou, apenas, de posições conjuntas, porque era isso que interessava, a defesa das posições estratégicas das várias esquerdas. O risco para esses partidos é nulo, embora não seja assim para Portugal, pois a situação do país, da economia e do Estado é bem melhor do que em 2011.
Esta situação é, todavia, clarificadora para o sistema político. A partir de agora, é claro que entre o PCP, os Verdes, o Bloco de Esquerda e o PS existem cumplicidades, uma idêntica leitura marxista da história, uma vontade de ocupar o Estado, a defesa de múltiplos interesses corporativos. Mas a direita tem também de tirar consequências deste processo.
Como já escrevi na minha ultima crónica, o PSD e o PP têm vantagens em concorrer separados e negociar apenas acordos pós-eleitorais. O PSD tem de ocupar, de novo, o centro da política portuguesa, voltar a sua matriz social-democrata, que abandonou com pesadas consequências. Algumas das medidas, que a pretexto do rigor e da austeridade foram tomadas, tiveram na base um claro preconceito de cariz neoliberal em relação ao interior e à sua debilidade estrutural.
As reformas introduzidas no quadro local, no que diz respeito às freguesias e às empresas municipais, foi ditada por uma racionalidade de régua, esquadro e calculadora por uns jovens recém-licenciados nascidos em Lisboa e a reorganização dos serviços do Estado só esvaziou ainda mais o interior.
A evolução da situação política nacional, tão precária na sua base de sustentação, tornará inevitável, já em 2016, a eterna discussão inerente à nossa jovem democracia: o que deve prevalecer, quando a situação for emergente, o interesse partidário ou o interesse nacional?
Por: Júlio Sarmento
* Ex-presidente da Câmara da Trancoso e antigo líder da Distrital do PSD da Guarda