Equiparado a um hospital veterinário, onde só os animais selvagens têm via verde, o Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens (CERVAS) fica em Gouveia e os seus objetivos estão bem delineados: detetar e solucionar os problemas associados à conservação das populações de animais selvagens e dos seus habitats.
Desde a recuperação clínica de animais até à realização de ações de educação ambiental em escolas, passando por atividades de observação de biodiversidade, o trabalho deste centro é alargado e ali não há tempo para se estar “de braços cruzados”. «Todos os animais selvagens são recebidos a qualquer hora do dia, em qualquer dia do ano», garante o coordenador e médico veterinário Ricardo Brandão. O Verão continua a ser a época do ano em que mais animais chegam ao CERVAS, levando à sobrecarga das instalações do centro – que neste momento conta com cerca de 90 animais a seu cuidado. Poderia pensar-se que esta subida considerável se deve aos incêndios, mas a verdade é que o ingresso de animais feridos devido às chamas é muito raro: «A maior parte dos animais selvagens morre, principalmente os mamíferos, répteis e anfíbios», refere Ricardo Brandão, adiantando que no caso das aves «as que já forem adultas, com capacidade de voo» têm mais possibilidades de escapar.
Mas afinal quais são os motivos que justificam este aumento em junho e julho? Serão sobretudo as quedas ou saídas precoces do ninho, situações de acidentes – desde atropelamentos a colisões com estruturas –, mas não só. O veterinário esclarece que nesta altura «há mais espécies no nosso território» e também «mais pessoas no campo», o que aumenta a probabilidade de se encontrarem animais em situações complicadas.
Histórias com final feliz
Desde animais quase sem lesões a outros completamente mutilados – ou até já mortos –, as condições em que chegam ao CERVAS depende da causa de ingresso (atropelamento, tiro, eletrocussão, colisão com estrutura, cativeiro ilegal, queda de ninho ou envenenamento) e da rapidez na entrega. Aliás, Ricardo Brandão avança que as situações mais complicadas são «invariavelmente aquelas em que há uma demora na entrega», alertando por isso que sempre que alguém fica com um animal selvagem em casa em vez de o direcionar às entidades competentes, «além de estar a cometer um crime, está a comprometer seriamente a sua recuperação». Para o responsável, a situação mais difícil que tiveram em mãos foi a de uma águia-pesqueira que, apesar de controversa, teve um final feliz. O animal chegou ao CERVAS em março de 2016 após ter sido eletrocutada na Figueira da Foz e, ao que parece, o trabalho do centro foi dificultado por se tratar de «uma espécie muito nervosa e que sofre bastante de stress em cativeiro», explicou o coordenador.
Apesar da complexidade do caso, os funcionários do centro conseguiram que o animal recuperasse em tempo recorde – três semanas – para que pudesse fazer a migração para a Alemanha. Mas nem só a história desta ave de rapina ficou na memória daqueles que operam, dia após dia, no CERVAS. Ricardo Brandão recorda o momento em que um britango, posteriormente apelidado de “Poiares”, foi devolvido à Natureza. O animal chegou a Gouveia debilitado, com peso abaixo do normal para a espécie, mas não foram «detetadas lesões nem outros problemas graves». A recuperação da “Poiares” (uma fêmea) foi curta, tendo em conta que se tratava de uma ave adulta em época de reprodução, e consistiu em alimentação, treino de voo e musculação.
No dia 2 de junho o britango já estava pronto para voltar ao seu habitat natural e foi no miradouro do Penedo Durão, perto de Poiares – local onde havia sido recolhido pela Associação Transumância e Natureza (ATN) – que o CERVAS o “libertou”. Aliado a isso, a “Poiares” foi o segundo britango a ser marcado e que está a ser seguido por GPS, no âmbito do projeto LIFE Rupis.
Os “bichos-de-sete-cabeças”
Contudo, há casos que se tornam um “bicho-de-sete-cabeças”. «Quando há lesões graves provocadas por traumas violentos ou se houver fraturas expostas de membros, é muito difícil conseguir uma resolução a 100 por cento que permita a devolução de um animal selvagem à Natureza», sublinha Ricardo Brandão, acrescentando que também no caso das eletrocussões, o tratamento é mais difícil «quando há muita área do corpo afetada e passou muito tempo desde o acidente até à entrega do animal». Já os casos de cativeiro ilegal são destacados pelo veterinário como situações complicadas, pois os animais «desenvolvem problemas mentais e comportamentais difíceis de resolver». Para agravar esta situação, Ricardo Brandão alerta para uma realidade ainda mais assustadora: «Há pessoas que cortam intencionalmente penas e até asas ou bicos de animais», refere.
Quanto às principais carências do CERVAS, o clínico destaca uma: a escassez de recursos humanos contratados. Apesar disso, o centro tem conseguido colmatar essa lacuna «com um grande número de voluntários muito dedicados» e com o estabelecimento de parcerias com várias entidades. No entanto, Ricardo Brandão destaca a necessidade de ter mais apoios: «O CERVAS precisa de mais patrocinadores e apoios, tanto do Estado como de particulares, que podem ajudar, por exemplo, através do apadrinhamento de animais em recuperação», sugere o responsável.
O CERVAS trabalha sob a gestão da Associação ALDEIA (www.aldeia.org) desde 2009, em parceria com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e a ANA – Aeroportos de Portugal, SA, o seu principal patrocinador. Tem-se notabilizado pela recuperação e devolução à natureza de centenas de aves.
Sara Guterres