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O hooligan

Ninguém como ele deu à moda um espelho para se olhar a si mesma – e ver o que o tempo fez dela e de nós. O que nele era mais individual transformava-se no mais colectivo, o que parecia mais singular tornava-se no mais comum (as calças de cintura descaída a mostrar o que se escondia). Por isso, agora que se deu à morte, muitos disseram que era o maior, o melhor, o mais criativo, o mais inovador, o mais provocador, o mais inspirado, o mais inspirador. Lee Alexander McQueen transformou a sua origem e a experiência dela numa sensibilidade apta a representar uma época. A sua alma era metálica e negra como na ficção científica. Fez da aisthesis um pathos. Ver os seus desfiles era ser apanhado numa armadilha em que todas as doenças mentais se tornavam imagens do corpo. Com ele, era-se inseminado artificialmente para gerar morte. Cada desfile era um ‘foda-se!’ atirado ao ar frio.

Gosto de imaginá-lo ainda muito jovem, a trabalhar nos alfaiates de Savile Row. Esses seus fatos são como as pinturas e os desenhos que vemos no Museu de Barcelona antes de Picasso ser Picasso. Quando vou a Londres, gosto de passar um dia em Savile Row e em Jermyn Street. Entro em cada alfaiate e em cada camiseiro para ver aquela arte de dar ao traje uma genealogia. Em cada jovem que ali nos atende há um McQueen à espera da vez, que quase nunca chega. Alguns fazem dessa espera uma paciência sonhadora; outros, um ressentimento educado. Compra-se um cinto ou um cachecol, manda fazer-se um roupão (bege com forro de seda cor-de-rosa, como o de Churchill; azul com forro vermelho, como o do duque de Windsor; cinzento forrado de violeta, como o de Sir Laurence Olivier), e há nos gestos de quem nos atende uma perícia lenta de artífice, uma disciplina severa de prisioneiro. Ali, não há pressas: sabe-se que o dinheiro compra o tempo. Mas há, por vezes, um tédio das formas. Conta-se que Alexander McQueen, quando fez um fato para o príncipe Carlos, bordou no seu interior palavras de fúria plebeia: “Sou uma besta.”

O pai era taxista e teve seis filhos. Lee era o mais novo e cedo aprendeu que a vida é inseparável de uma regra e de um excesso. Quando se tornou no que era e no que foi, fez desse excesso a regra. O seu estilo vinha do passado e do futuro, era sagrado e profano, tribal e desenraizado, religioso e herético, popular e vertiginoso, dramático e extravagante, animal e virtual. Um estilo que nascia na tensão, na quezília, no conflito, na aversão, na violência. E na crueldade, no desespero, na dor, na destruição. Era um estilo feito na alma e desalmado, pós-humano, que gerava abalo, devastação e ruína. Chamaram-lhe radical, gótico, profético, tecnológico, cibernético, futurista. Filipe Faísca diz que sempre o achou “muito misógino nas suas criações”. É insólito e justo que seja este costureiro a dizer o que quase coincide com uma conversa de homens que um dia ouvi. À mesa onde almoçavam, o vinho acendia-lhes um erotismo verbal defensivo: “Estes costureiros odeiam as mulheres e querem que todos os homens as odeiem. Por isso, vestem-nas com aqueles vestidos horríveis…”

Alexander McQueen não odiava as mulheres. Amava-as de outra maneira, aquela que fazia feliz a infeliz Marilyn Monroe, como conta Truman Capote na “Música para Camaleões”. Este admirador de Bosch, de Hitchcock e do hip-hop vestiu, para que as víssemos melhor, Björk, Lady Gaga, Kate Moss. Cada modelo era-lhe um amuleto. E a sua amizade infernal com Isabella Blow dura mesmo depois do suicídio de ambos.

Embora praticante de uma contínua insubordinação visual, o bad boy, na morte de Yves Saint Laurent, fez-lhe um louvor absoluto. Anos antes, quando dirigiu a casa Givenchy, afirmara que o fundador, Hubert de Givenchy, era um costureiro “irrelevante”. Este, com uma elegância que tomou o nome da vingança, passou a arrasar metodicamente cada colecção do enfant terrible. Deve ser também a isto que se refere Karl Lagerfeld ao falar da moda como de um mundo “exposto à angústia”.

McQueen aparecia com o cabelo rapado e com botas militares. Chamavam-lhe “o hooligan da moda”, o que é um bom título de nobreza no século XXI. Como quase todas as pessoas interessantes, era dado a depressões. Engordava e emagrecia, aparecia e desaparecia, ligava-se e separava-se. Era tímido, autocrítico, rebelde, perfeccionista, atormentado, enérgico, iconoclasta, insuportável. Um fim de tarde, vi-o em Manhattan, na inauguração da sua loja do Meatpacking District, e observei nele uma aflição altiva.

Há uma bela fotografia de Alexander McQueen com a mãe. Ela tem os braços sobre ele, e nos olhos de ambos brilha a mesma luz fixa. Amavam-se muito. A mãe morreu, e o filho foi escrevendo no Twitter a impossibilidade de viver sem ela. Dez dias depois, apareceu enforcado na sua casa de Londres. Tinha 40 anos e não conseguira reerguer-se. Deixou quase pronta a colecção para a próxima Semana da Moda de Paris. É a isto que se chama uma obra inacabada.

Por: José Manuel dos Santos

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