Este é o relato de quem sobreviveu ao fogo. “Sobreviver” parece forte demais. Mas não é. O verbo é mesmo esse, porque um incêndio é uma batalha desigual. Ele é forte demais, grande demais, rápido demais. Num instante, o ar queima. As distâncias encurtam-se. As chamas, que estavam longe, surgem ao nosso lado. Falha tudo. Não há armas suficientes.
Pela primeira vez, falo na primeira pessoa para escrever um texto para o jornal. Ironia do destino, há 28 anos, estreei-me nas reportagens para o Expresso com a cobertura de um incêndio na zona da Lousã. É diferente. Desta vez, mete medo a sério. Somos nós no centro da narrativa, a tomar decisões e a pensar rápido. A ter de escolher entre ficar e partir, entre deixar tudo para trás, ou correr o risco de nos perdermos com demoras.
No sábado, dia 12, as férias no paraíso que é a barragem de Castelo de Bode, acabaram de repente. Éramos sete, numa casa alugada para umas férias em família. O fogo, que estava longe, chegou-nos ao perto muito depressa. As chamas passaram por cima da casa. Rodearam as paredes. Incendiaram dois carros, enquanto aguardávamos, fechados na grande sala, com tudo cerrado e toalhas molhadas na cara, que tudo passasse.
Passou. Mas voltava. A casa protegeu-nos, mas começaram a ouvir-se explosões, que tentávamos adivinhar de que seriam. Eram os carros lá fora, num imenso jardim que parecia longe de perigo, mas não era. Um militar apareceu na rua e só gritava “fujam, fujam!”. Pedimos ajuda e ela veio.
A GNR levou os meus pais, ajudou a retirar a minha mãe que está numa cadeira de rodas, e seguimo-los com o carro que sobrou e um saco com as carteiras e os telemóveis que conseguimos agarrar na pressa de fugir. Ah, claro, e os remédios da minha mãe, que, na verdade, são o mais importante.
Percorremos cinco quilómetros para encontrar um ar respirável. Passamos entre cinzas fumegantes, restos de fogo que se mantinha vivo até à borda da estrada e restos de árvores a arder. O fumo embacia a paisagem que, pouco tempo antes era verde e esplendorosa e agora é um susto cinzento e negro. O ar queima.
Fomos parar ao sossego de um largo da igreja, na aldeia da Serra, onde se reuniram os “retirados”, ou “evacuados”, que é o nome que passamos a ter. Gente, como nós, apardalada. De lenços a tapar a cara e os olhos raiados. A trocar nomes de terriolas perdidas no meio dos montes e vales. A tentar perceber onde “ele anda”. Por onde passou, o que levou.
‘Ele’ é o fogo, que é o protagonista principal. Os bombeiros parecem playmobis ao pé das paredes que as chamas formam. Os carros, que nas garagens das corporações parecem gigantes, tornam-se minúsculos. A água não chega. Nunca é suficiente. As mangueiras não vão a todo o lado. Também aqui a esperança vem do céu. Chamam-se aviões, descarregam a única água que apaga este fogo. E dá alguma trégua.
Voltamos para Lisboa. Sãos e salvos, como sabe muito bem dizer. Quando ligo a televisão, fala-se num número recorde de “ocorrências” que levou a Proteção Civil a desdobrar-se em tarefas e a distribuir peças pelo mapa de um país em chamas por todo o lado. O incêndio de Tomar é um dos muitos e fiquei a saber que sou uma dos 78 retirados. Vou registar isso no meu curriculum. Do sofá da minha sala, os números que se despejam sobre “meios aéreos”, “operacionais no terreno” ou forças “disponibilizadas” até fazem parecer que tudo corre bem. Mas não corre. E, desta vez, a culpa não foi do Siresp. Em Venda, as comunicações não falharam. Valeu-nos isso.
Por: Rosa Pedroso Lima
* Expresso