Sem espanto, os laboratórios Roche suspenderam o fornecimento de medicamentos e produtos a 23 hospitais do Serviço Nacional de Saúde. A razão é muito simples: dívidas de 145 milhões de euros há mais de 420 dias, mais de um ano. Claro que podemos considerar excessiva a posição de força de um grande laboratório, como a Roche, em especial considerando que são os utentes, os doentes, quem em última instância sairá penalizado. Mas será aceitável que o Estado se permita a esta irresponsabilidade? Será admissível que a leviandade e falta de seriedade da administração pública, não pagando aos seus fornecedores, ponha em causa inclusive a saúde dos cidadãos?
Evidentemente, este não é um caso isolado. As dívidas a fornecedores é o normal na administração pública. Para o gestor público é rigorosamente igual pagar a 30 dias ou a três anos, não tem dores de cabeça com o pagamento de salários, não passa noites acordadas sem saber onde arranjar dinheiro para pagar impostos, não treme quando ouve o telefone e do outro lado está o gerente bancário a dizer que se venceu mais uma letra e não há liquidez para a reformar quanto mais para a pagar. Enfim… o gestor público sabe que tem o salário garantido ao fim do mês.
Muitos fornecedores gostariam de levantar a voz e clamar, como a Roche, exigindo o pagamento das faturas atrasadas. Mas nem todos têm o músculo dos laboratórios e por isso se calam. A economia portuguesa depende do Estado e o Estado paga como quer e quando quer – quem não aceita esta regra básica pode fechar portas. Naturalmente que à coisa pública isto sai muito caro, pois a maioria dos fornecedores já incorporam um acréscimo no preço para suportar o prazo largo de pagamento – o que significa que o Estado compra sempre mais caro que o preço de mercado – e depois ainda terá de suportar os juros comerciais quando a dívida se prolonga excessivamente no tempo (dos 145 milhões reclamados pela Roche cerca de 25 milhões são juros!).
As dívidas pornográficas do Estado arrastam, naturalmente, muitas empresas para a falência, promovendo dramas de toda a ordem, desde o desemprego à penúria da economia. Precisamente por isso, a troika, no memorando assinado para o resgate do país falido que é Portugal, impôs regras sobre o pagamento a fornecedores. E como consequência foi promulgada a lei de compromisso financeiro, que faz responder disciplinar e criminalmente todos os responsáveis públicos que assumam compromissos financeiros sem a garantia de os liquidar em 90 dias. O diploma já promulgado por Cavaco Silva é contestado por todos os que, desde a administração pública, contribuíram para esta situação e agora podem ser alvo de responsabilização criminal. Veja-se a posição dos administradores hospitalares que vieram logo ameaçar o governo com a demissão em massa por haver uma lei que os obriga a serem responsáveis por aquilo que fazem. Grotesco.
Veja-se também como os autarcas se sentem constrangidos e muito irritados pela obrigação de terem de apresentar contas. Isto, depois de alguns terem clamado por ajuda para evitar a falência. Ou para lhes ser proporcionado um plano de resgate financeiro similar ao da Madeira. Todos estes movimentos revelam bem como um diploma que quase passou despercebido na comunicação social leva à exasperação de muitos por atingir em cheio um monstro habituado a fazer pouco dos fornecedores, com total impunidade, como muito bem comentou António Ribeiro Ferreira no diário i.
Precisamente neste contexto de irresponsabilidade financeira da administração pública veja-se como a Câmara da Guarda esperava, como de pão para a boca, o pagamento de 1,7 milhões de euros por parte do Turismo de Portugal, previstos para o passado dia 28. Até ao fecho desta edição, esse pagamento não terá acontecido. Álvaro Amaro até pode ter ficado a rir-se com isso, mas a verdade é que o péssimo negócio da venda do Hotel de Turismo por parte da Câmara é uma coisa e o não honrar de compromissos por parte do Estado é outra. Mas afinal é o habitual por parte da administração pública, ainda que isso possa implicar danos e prejuízos de toda a espécie às empresas e aos cidadãos.
Luis Baptista-Martins
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