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O desprezo pela democracia

Por de trás da proposta de reduzir o número de deputados não estão nem razões económicas nem a defesa de um melhor Parlamento. Está uma agenda que vê a democracia e o voto popular como uma perda de tempo.

Corre pela Net um apelo: a redução do número de deputados de 230 para 180. Nos tempos que correm – ou talvez em todos os tempos que correram – não é fácil defender a instituição parlamentar. Ela é, por boas e más razões, alvo de muitas críticas.

As boas razões para o descontentamento com a Assembleia da República são evidentes. Grande parte dos deputados abdica de pensamento próprio e de autonomia na acção em relação às lideranças que os escolhem, outros dedicam-se a negócios e à construção de carreiras à sombra de contactos políticos e muitos limitam-se a passar pela Assembleia da República sem qualquer brio ou entrega. Será, concedo, uma minoria a dignificar o lugar que ocupa – uma minoria que devia, já agora, merecer um pouco mais de destaque para poder servir de exemplo. Mas se formos justos talvez tenhamos de dizer que é assim em quase todas as actividades e muito especialmente naquelas que envolvem algum poder.

As más para este ódio ao Parlamento são mais interessantes. Apesar dos deputados serem, com o Presidente da República e os autarcas, os únicos detentores de poder que o cidadão pode escolher, o mesmo cidadão com eessa capacidade de escolha tende a desprezá-los. Estão, por assim dizer, mais à mão. Acresce a isto que o parlamentar, ao contrário do ministro ou do autarca, não executa. Discute, debate e decide. E quanto menos valor uma sociedade dá à democracia, quanto menos viveu essa democracia, menos valor tende a dar a esse exercício incessante de confronto, conflito e debate. O apelo à unidade nacional, aos consensos de regime, aos salvadores iluminados ou, nos últimos tempos, à eficácia dos tecnocratas no lugar da política é tanto maior quanto menor a confiança nas virtudes da democracia.

Juntam-se a esta impopularidade de sempre alguns factores que não podemos ignorar. Com os centros de decisão desinstitucionalizados e desterritorializados os poderes dos Estados Nacionais são cada vez menores. A aparência de inutilidade de muitos dos debates parlamentares deixou de ser apenas uma aparência. As sociedades estão cada vez mais atomizadas e os partidos perderam o seu papel mediador e deixaram de ser portadores de grandes narrativas alternativas entre si.

Neste cenário, defender a redução do número de deputados parece uma medida saudável. Justa, até. Poupa os seus proponentes da (ainda) ignóbil suspeita de quererem acabar com o único espaço onde a divergência politica está representada e permite que digam que com tal medida poupariam dinheiro (bastante pouco, diga-se em abono da verdade), esse desígnio a que tudo parece estar subitamente subjugado.

Não vou aqui perder grande tempo com a falta de rigor de muito do que se diz sobre este tema. Qualquer cálculo matemático rigoroso feito por quem acompanhe alguma teoria sobre o tema mostra que Portugal não tem, em comparação com a generalidade dos países, deputados a mais. A haver alguma desproporção, é para menos.

Também não tratarei aqui da repercussões práticas de tal medida. Resumiria assim: com ela as regiões menos populosas do País perdem representação, os partidos mais pequenos ficam ainda mais subrepresentados (quanto menos deputados, menos proporcionalidade), deixando uma crescente fatia da população excluída da democracia parlamentar, e os partidos do bloco central ficam ainda mais sós no jogo democrático. Ou seja, os perigos associados à rotatividade sem qualquer confronto de ideias aumentam.

Prefiro discutir o que está por de trás desta agenda antidemocrática. Antes de mais, a ideia de que os custos da democracia são luxos, não comparáveis à saúde, educação ou justiça. Depois, a de que os deputados são substituíveis sem prejuízo por poderes não eleitos – empresários, corporações, administração pública, tecnocratas, juízes, jornalistas. E a de que “os políticos” são uma massa indiferenciada, como se de uma classe se tratasse, esquecendo-se assim que a sua função de representar a diversidade política e social de um País os torna distintos entre si. Por fim, concentra o debate na qualidade particular de cada deputado e não na qualidade geral da nossa democracia. Ou seja, despolitiza a própria política, confirmando a ideia da democracia como um mero confronto de personalidades.

Seria absolutamente pacífico discutir a bondade da redução do número de deputados. Com uma condição: que os argumentos se ficassem pela defesa da qualidade da democracia. Seria o Parlamento mais democrático e representativo da diversidade nacional com menos deputados? Seriam os debates mais produtivos? Sentir-se-iam os cidadãos melhor representados na sua diversidade? Não me parece que haja qualquer fundamento para responder positivamente a qualquer uma destas perguntas.

Mas se o argumento é os custos dos deputados e a motivação o desprezo pela instituição parlamentar (independentemente da qualidade ou falta dela de cada deputado – que só o voto pode resolver), então o debate é se a democracia vale o que pagamos por ela e se estamos disponíveis para dispensar (ou começar a fazê-lo) os representantes que elegemos. E aí, meus caros amigos, a coisa é bem mais séria. E eu respondo sem vacilar que a democracia exige uma ética dos eleitos mas não tem preço. E que não dispenso nem os deputados que elejo nem o poder de os eleger. Nem, está claro, um parlamento com dimensão suficiente para que não seja artificialmente excluído da democracia quem não concorda com a rotatividade que nos tem governado.

Por: Daniel Oliveira

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