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O Capitão Charles Boycott

Circula na Internet e, por SMS, nos telemóveis, uma curiosa convocatória: nos dias 1, 2 e 3 de Junho, ninguém deve abastecer-se de combustíveis nas maiores gasolineiras. A GALP, a BP e a REPSOL (há variantes), se a iniciativa tiver o número adequado de adeptos, vão sofrer uma dramática redução de vendas. A ideia é fazer funcionar a lei da oferta e da procura: para estas empresas recuperarem os clientes, terão de baixar os preços, de se tornar competitivas em relação às outras; os consumidores, vendo-as baixar os preços, regressarão. A ideia é boa, ao menos aparentemente, mas tem vários defeitos. Antes de mais, ao deixarem de abastecer nas maiores empresas, os consumidores reduzirão drasticamente o leque das suas escolhas. Queiramos ou não, a esmagadora maioria dos postos de abastecimento pertencem às três maiores, sendo residual o mercado das restantes. Ainda por cima, boa parte das outras fornece nas suas bombas combustíveis da GALP – que perderia de um lado para ganhar nos outros. Outro inconveniente reside no facto de um boicote de três dias não ter qualquer garantia de sucesso. A pretenderem-se resultados, há que sujeitar uma das maiores, ou a maior, a um prolongado ostracismo.

Foi isto que aconteceu ao pobre capitão Charles Boycott, lugar-tenente de um nobre irlandês do século XIX. Quando os agricultores que traziam de arrendamento as terras do seu mandante pediram redução das rendas, ele não só recusou como os despejou. A reacção da comunidade foi devastadora: todos se recusaram, a partir daí, a negociar com ele. Ninguém lhe vendia um pão, lhe comprava um produto, lhe oferecia trabalho. A partir daí, era como se não existisse. Em riscos de perder as colheitas, contratou, longe, umas dezenas de trabalhadores orangistas, escoltados por milhares de polícias. O custo da protecção excedeu em muito o benefício do trabalho recebido e, ainda por cima, o boicote continuou até ao seu sucesso total. O exemplo frutificou em inúmeros locais e criou um neologismo que acabou por imortalizar o nome da vítima e estabelecer um procedimento. A greve, já agora, não passa de uma variante da mesma ideia. Nada disto era novo, já agora. Mencionei há pouco o “ostracismo” a que foi votado o arrogante capitão Boycott. Essa palavra tem também a sua história. Na antiga democracia ateniense, os cidadãos decidiam primeiro, de uma forma aparentemente arbitrária, por marcar um “ostracismo”, procedimento assim nomeado pelo uso, para o voto, de pedaços de cerâmica (“ostraka”) em que era escrito o nome do cidadão que iria ser excluído da cidade, normalmente por um período de dez anos. O objectivo era garantir a paz social, eliminando possíveis perturbadores da ordem e a desobediência acarretava a pena de morte. O boicote é mais subtil, e mais terrível – acaba por funcionar como um exílio na sua própria terra e não tem sequer a promessa de um regresso.

A ideia, de boicote às gasolineiras, viola, aparentemente, as normas da concorrência (aliás não aplicáveis aos consumidores), embora muito se pudesse dizer sobre a aparente concertação de preços entre elas. Dizem que não, dizem que a subida dos preços dos combustíveis tem a ver com o aumento da procura de chineses e indianos e a escassez do produto, com as políticas da OPEP, com a política fiscal do governo. Este, por sua vez, pouco pode fazer: se não cobrar impostos por via do imposto sobre os combustíveis, terá de os cobrar por outro lado (há uns tontos no PSD que pensam de outra maneira). Ainda por cima, os combustíveis fósseis são os grandes responsáveis pelas alterações climáticas e a diminuição do seu consumo, mesmo que estimulada pela alta do seu preço, é um objectivo desejável.

Circula outro mail na internet (obrigado, Isabel Gonçalves): no primeiro trimestre de 2008 a GALP aumentou em 37% os seus resultados operacionais, a BP em 63% e a REPSOL em 39%. Vai um boicote, bem organizado?

Por: António Ferreira

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