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O canal do Panamá

Em geral, é claro que todos sabíamos o que os offshores em paraísos fiscais significavam. Nada surpreendem, nesse sentido, os “Panama Papers”. O que não sabíamos era o que revelavam em particular, quem expunham em concreto, com nomes e rostos, alguns muito notórios mundialmente. Às vezes quase sabemos, mas permitimos que a ilusão continue, para não tirarmos todas as consequências. É como saber muito bem que alguém anda a enganar-nos mas preferirmos não aprofundar muito. A não ser que alguém seja apanhado em flagrante e nos obrigue a tomar posição. O que o maior “leak” da História fez foi não dar mais à escolha enfiar a cabeça na terra. Pelo contrário, obrigou todo o cidadão que paga impostos a ver a realidade com os olhos que a terra há de comer. O flagrante apanha tubarões à escala mundial como tubarõezinhos nacionais. Entre estes, um empresário que diz que não, mas que uma investigação jornalística confirma que sim – Ilídio Pinho. E também um outro Pinho, que foi ministro da República. Um ano depois de ter sido notícia por reclamar ao BES milhões de “reforma”, Manuel Pinho consegue assim regressar às notícias nacionais. E depois dos corninhos, teima em não ser por boas razões. Mas há uma responsabilidade que nos cumpre a todos, peixe miúdo que paga impostos, não conhece offshores nem outra realidade senão a do rendimento obtido do seu próprio trabalho. Simplesmente não tornar a olhar para o lado e exigir que se escrutinem estas práticas.

Até porque o offshore panamaniano, apesar de um verdadeiro canal de rendimentos, é, na verdade, apenas a quarta maior firma de advogados offshore do mundo. Todas juntas, andarão pela centena, muitas também em território europeu. Se não é apenas a ponta do iceberg, perto disso se tratará. Precisamos, pois, de mais “leaks” e de mais análise, até porque também um “leak” pode ser manobrado, por exemplo procurando denunciar mais uns do que outros.

Também sabemos que autocratas têm ambientes políticos bem mais propícios à formação de fortunas inconfessáveis do que representantes políticos em democracias providas de uma forte e atenta esfera pública. Por isso, talvez evitar pagar impostos seja a última preocupação dos primeiros e, no entanto, a que mais motiva os segundos. Os primeiros porque do nada aparecem com fortunas que são verdadeiros orçamentos de estado, os segundos porque fogem, mesmo que legalmente, ao pagamento de impostos que não podem deixar de exigir aos seus concidadãos. Mas, em ambos os casos, o que realmente se revela de forma tão ironicamente concreta é que recorrem a uma mesma firma offshore e a uma mesma lógica de ocultamento de riqueza. E isto não sabíamos ainda de forma tão cristalina. Apesar de todas as diferenças, elites políticas por todo o mundo estão colonizadas por um poder financeiro global, de que a Mossack Fonseca é apenas a quarta potência. A questão é mesmo geopolítica. Será que o mundo ainda se divide em autocracias e democracias, em blocos assim e assado? Ou, pelo contrário, mais facilmente dividiremos o mundo entre os financeiramente colonizados e os outros. Ou não tão facilmente porque a divisão, podendo ser real, é realmente ocultada e apenas operante pela captura venal de elites políticas que naturalmente não deixarão, podendo, de fazer a sua parte na legalização do encobrimento e na promoção da globalização deste poder. Justifica-se, pois, uma suspeita e é sistémica: who (and what) rules the world? Não seria de procurar estabelecer correlações entre países assim colonizados e alianças nas relações internacionais, até nas intervenções militares?

Por: André Barata

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