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«O café faz parte do meu imaginário infantil e juvenil»

Cara a Cara – Carlos Adaixo

P – O que o motivou a escrever um romance? Era uma vontade já antiga?

R – Sempre tive o hábito de escrever pequenas histórias. Escrevi para alguns jornais da região e sempre gostei de escrever pequenas histórias que são mais fáceis de fazer em termos temporais. É mais complicado escrever um romance, cruzar personagens, alongar a história, criar um enredo e procurar um contexto. Neste livro há um contexto social. Passa-se em meados da década de 60 do século passado numa cidade de província. Há aqui um enredo, um contexto e um cenário que é um café no centro da cidade e já trazia comigo alguns personagens que acharia interessantes de usar. Depois já tinha o cenário onde esses personagens, à partida, circulariam e onde grande parte da interação entre eles iria acontecer. Só foi preciso encontrar o tempo e a disponibilidade para o conseguir escrever.

P – De que trata este “Café no Centro da Cidade”?

R – O título não esconde nenhum truque. É mesmo um café no centro da cidade, uma cidade de província da década de 60 do interior do país a que não dou um nome. Há pessoas que circulam nesse café que na década de 60 representava um pouco o ponto de interação e de encontro das pessoas de uma determinada comunidade. Ao mesmo tempo o café era onde se sabiam as notícias e desempenhava o papel que hoje tem a comunicação social e a própria Internet. Embora hoje em dia haja cafés, pastelarias e outros centros de encontros, já não representam a mesma coisa. As pessoas não têm já o tempo e a disponibilidade que tinham naquela altura. O ritmo de vida era diferente e o encontro entre as pessoas acontecia de uma forma muito mais prolongada. Havia pessoas inclusive que a determinadas horas do dia faziam um pouco de sala dentro do café. Essa sala proporcionava a conversa, o diálogo entre as personagens, o cruzamento de ideias, de histórias, de mexericos e de inconfidências que, no fundo, também são relatados no livro. O cenário é o café e a história depois decorre em grande parte nesse mesmo local.

P – Porquê um café? Inspirou-se na sua própria experiência para ir criando as personagens?

R – O café faz parte do meu imaginário infantil e juvenil. Estou a falar em cafés que foram históricos, nomeadamente na cidade da Guarda, mas em todas as cidades do interior haveria cafés emblemáticos com uma arquitetura relevante, com alguma dignidade inclusive e esse espaço ficou-me na memória. Nomeadamente na infância, recordo-me de um ou outro que tinha essa dignidade de espaço e de eu ficar deslumbrado de poder entrar naquele espaço ainda miúdo. Mais tarde, enquanto jovem, fui frequentador também fazendo um pouco de sala enquanto estudante, onde me encontrava com os meus amigos. Aqui cruzei um pouco o que sentia em relação a esses espaços com o ficcional que acaba por ser a tal história que recrio, baseada num contexto histórico que é a década de 60, onde claramente havia um estado político de uma certa vigilância do cidadão. Esse café era também ao mesmo tempo um sítio onde os cidadãos estavam, conversavam, partilhavam ideias mas ao mesmo tempo eram vigiados e controlados. Há aqui o outro lado em que o café também era centro de vigilância e de ocupação de alguns personagens que tinham essa função. Nomeadamente um dos personagens da história é um polícia político que está permanentemente a vigiar e vai controlando tudo o que se passa na cidade e que tem obviamente os seus informadores aqui e acolá. Nas respetivas mesas há sempre alguém ou um ouvido indiscreto que vai ouvindo as histórias. Insinua-se muito isso e eu também não faço questão de tornar isto num romance político. É um romance sobre uma vida que é real. É curioso que eu tenho tido algum feedback de pessoas sobretudo da geração dos meus pais, pessoas já com 60 e muitos, que lêem a história e acham interessantíssimo porque estão a reviver o café dos seus tempos e até dão um rosto e um nome a alguns dos personagens. Também não sou muito descritivo das próprias personagens e deixo que a pessoa fique com uma ideia apenas com a personalidade e depois o aspeto físico é recriado pelo próprio leitor.

P – A Guarda também funciona como uma personagem ou reminiscência do passado?

R – A Guarda só tem um papel que é o de ser a cidade onde cresci e vivi até acabar o secundário. A Guarda é o estímulo, abre-me aqui uma espécie de cápsula do tempo no fundo e é nela que me localizo mas obviamente que estou convencido de que, e já aconteceu, há pessoas de outras cidades que leem o romance e veem outra cidade no pano de fundo que é o cenário do romance.

P – Do que gosta mais: Filosofia, Psicologia, Pintura ou Escrita?

R – Será sempre difícil escolher entre o que considero serem atividades complementares. Para mim a escrita, se calhar por razões que têm a ver com a minha formação, nomeadamente, com a filosofia acaba por funcionar como uma espécie de corrente natural do que eu faço, de como dou as minhas aulas, da forma como me relaciono com os meus alunos. A escrita acaba por ser uma espécie de corrente natural à qual não ponho entraves e acaba por acontecer quase de forma natural. A arte é um contraponto claramente, ao qual já me dedico há muito tempo. Já vou em 25 cinco anos de pintura, de artes plásticas, e tenho alguma história para contar sobre esse percurso. Em relação à escrita é o primeiro romance. Estou a dar os primeiros passos nesta área, está um bocadinho mais verde. Não é que não me sinta à vontade a escrever. Agora, escrever uma história mais longa com um maior número de personagens já é uma coisa que exige algum fôlego e só agora senti necessidade de o fazer. As artes e a escrita funcionam como atividades complementares. As artes continuam a funcionar para mim como um contraponto e não é por isso que deixarei de fazer uma coisa e outra.

P – Já pensa num próximo projeto na área da escrita?

R – Tanto pensei que está escrito outro livro. Sou um pouco impulsivo e quando me meto num projeto sou um bocado compulsivo e não consigo deixar de pensar naquilo que estou a fazer. Quando concluí o projeto do “Café no Centro da Cidade” depois de três, quatro meses de escrita intensa, durante uma semana fiquei quase inerte e perguntei para mim mesmo o que é que ia fazer com o tempo que me habituei a consumir na escrita e então comecei a escrever outro logo de rompante. É outro romance, embora completamente distinto deste, desde logo em termos históricos porque começa na década de 90 e vem até aos nossos dias.

Carlos Adaixo

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