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O Alemão

Sinais do Tempo

Tudo começou com pequenas falhas, cada semana que passava era menos uma palavra no vocabulário, que colmatava substituindo por sinónimos ou equivalentes. Não partilhava o que estava a acontecer, nem percebia se era importante, se valia a pena procurar ajuda. Tinha a certeza que os outros não se apercebiam dessas lacunas. O tempo ia passando e os sinónimos escasseavam. Episódios de chaves desaparecidas, tentativas frustradas de abrir a porta do apartamento do vizinho iam-se sucedendo.

As férias e o merecido descanso estavam próximos e haveriam de sarar estas mazelas.

Quem o rodeava percebia os sinais de fadiga e de melancolia, havia desaparecido o espírito crítico, a resposta pronta, o humor sagaz e a desconcertante rapidez de raciocínio. Trocava o nome dos colaboradores, as frases eram pobres e pouco elaboradas.

Passou as férias a escrever as suas memórias, enquanto ainda se lembrava, dizia gracejando. Quando regressou, fê-lo com esforço, sentia-se triste e não lhe apetecia sair da cama. Ali ficou olhando o teto, recordava sem recordar, via sem ver, uma lágrima escorreu até à orelha.

Finalmente desistiu e levaram-no à consulta, vieram os exames intermináveis, a medicação, as dietas, a psicoterapia, os jogos, as palavras cruzadas, a baixa medica, os amigos que o visitavam com mentiras piedosas, o carro, onde está o carro, onde guardaram as chaves? A dificuldade de distinguir o real do sonho, o presente e o passado fundidos, os erros, o carro, o maldito carro que desapareceu.

De repente todos o que o rodeiam são estranhos, o quarto é novo, os cheiros, a sala é infinitamente maior, o olhar vago e a apatia. Reclama porque os filhos não aparecem, mesmo quando acabaram de sair, confunde-os com os pais já há muito falecidos.

Nas memórias escritas nesse verão, dirigidas aos filhos, podia ler-se «quando lerem este texto, já nada me interessa, poderei estar ainda vivo fisicamente, mas estarei longe no pensamento, viajo no meu mundo fechado, por vezes sorrio, outras vezes choro…».

Depois vem a angústia nos poucos momentos de lucidez e a vontade de desistir, de pôr fim à vida. Chega a pedir ajuda ao vizinho do lado que não o entende.

O alemão é assim, frio, impiedoso, calculista, numa luta desigual destrói memórias, destrói relações, destrói vidas.

Cada vez mais frequente, o aumento de incidência relaciona-se com o aumento da longevidade, com os suspeitos do costume (diabetes e hipertensão), com a genética e os genomas. Alguma investigação recente refere a dieta mediterrânica como protetora, mas também a dieta “stop hipertensão” ou DASH é semelhante, mas é mais pobre em peixe e mais magra, a dieta MIND associa as duas, mas coloca mais ênfase nas nozes, feijões e frutos vermelhos.

Alguns medicamentos também têm sido estudados, a vacina DNA Aβ42 é promissora e, claro, as mezinhas, os chás e infusões, a banha da cobra.

Maldito Alzheimer!!

Por: João Santiago Correia

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