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Ninguém é Inocente?

Quebra-Cabeças

No início do século vinte eram os anarquistas. Entravam na ópera com uma bomba debaixo do sobretudo e faziam-na detonar. Quantas mais vítimas, melhor. Utilizavam o terror como motor para a transformação da sociedade e era essencial para a sua obtenção, do terror, que as baixas civis fossem pesadas. Era essencial que o cidadão comum pensasse duas vezes em sair à rua, em entrar em ruas movimentadas, em ir à ópera. E porquê? É que o cidadão comum, numa democracia, é o culpado em última instância das decisões do seu governo. É ou não é ele quem o elege?

É por isso que, diziam os anarquistas, “não há inocentes”. O cidadão comum passava a ser um objectivo militar legítimo, resolvida que estava a questão ética da morte de civis. Havia, é claro, outras objecções: “e as crianças, os loucos, aqueles que não votam, aqueles que a bomba, na sua cegueira de bomba, não separa dos verdadeiros culpados?”. Isto tinha resposta: a sociedade, no seu todo, era culpada. Havia os que concordavam com políticas erradas e havia aqueles que se lhes não opunham activamente. Todos, por isso, eram culpados. “Não há inocentes”. Os culpados da sua morte, respondiam, são os que apoiam a “situação”. São como civis em teatro de guerra, devem ser evacuados.

Depois do 11 de Setembro, quando os americanos preparavam a invasão do Afeganistão, depois das primeiras notícias a ligar o atentado à Al Qaeda e a Ben Laden, aí escondido, António Barreto escreveu no “Público” uma crónica a aprovar a ideia da invasão. Depois, foi de férias.

Creio que regressou à sua crónica semanal já a guerra no Afeganistão tinha terminado. Não escreveu uma palavra sobre os muitos insultos que entretanto tinha recebido nas páginas de muitos jornais portugueses, começando em “O Expresso” e terminando no seu próprio jornal. Mas escreveu algo muito pesado, disse que a esquerda portuguesa tem má consciência em relação ao terrorismo. Que repudia o método mas, no fundo, “até compreende”. Diria eu que ainda há muita gente a concordar com as premissas básicas do terrorismo, tal como estipuladas pelos anarquistas no século passado. Esta é, ainda, a reserva mental, a premissa não declarada, o pressuposto não dito atrás de todos os “mas”: “não há inocentes”.

O que há de novo é outro pressuposto a todas as objecções e a todos os “mas”, este já um pouco menos envergonhado, um pouco mais explícito: como se pode lutar contra uma super-potência como a América, como podem os palestinianos combater os israelitas, senão com o recurso ao terrorismo? É o mesmo que dizer que, a falharem os outros métodos de luta, então é legítimo o recurso ao único que sobra. É claro que temos aqui uma feia e pobre falácia, como aliás já a tínhamos no tempo dos anarquistas: a de que o terrorismo consiste na única maneira viável de lutar contra uma democracia belicamente invulnerável, a única forma de inverter o pensamento dominante na sua opinião pública. Mas é precisamente por ser uma democracia (tenho de dizê-lo?) que há muitas, inúmeras formas de fazer passar uma ideia…

Que resta disto tudo? Que o mínimo “mas”, neste contexto, tem todo um mundo de pressupostos inconfessáveis, ou não, por detrás. Por mim, continuo a acreditar na democracia: é possível, ao mesmo tempo, ser contra o terrorismo (sem “mas”) e contra Bush; ou aceitar as razões de uma “causa” apesar das bombas e não (nunca) por causa delas.

É que começa a haver um risco, que consiste em o cidadão comum, o “não inocente”, repudiar causas a priori legítimas apenas porque estas utilizam o terrorismo como uma arma. Não seria isto voltar o feitiço contra o feiticeiro?

Por: António Ferreira

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