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Natureza morta

Editorial

Todos os anos é igual. Agosto é mês de férias, de festas e romarias, de turistas e emigrantes de visita à terra natal. E é mês de fogos. Os incêndios que todos os anos por esta altura deflagram de mansinho e provocam sobressalto imenso por onde passam deixando um rasto negro de destruição. O flagelo já não impressiona, mas perturba, os populares já não o combatem (porque as autoridades não o permitem e o vilipêndio e desdém já se apoderou da população), mas vivem um misto de indignação e dor, de revolta pela impotência de controlar a força bruta das chamas e de lamento pela devastação. Que é todos os anos igual…

Mas há muita coisa estranha à volta dos fogos. Tanta que em surdina muitos falam em “indústria do incêndio”. Alguns dizem-no alto. Sem microfone nem gravador. E outros, baixinho, afirmam que, muito para além dos pirómanos e da ignição de uma natureza abandonada e cheia de produto inflamável, há, tem de haver, “interesses”. Não se sabe que interesses, nem se compreende que interesses pode haver maiores do que preservar o meio-ambiente. Já lá vai o tempo em que se apontava o dedo aos “madeireiros” cada vez que havia um incêndio, mas hoje os dedos são todos apontados ao comércio à volta do fogo – talvez de forma injusta, mas é no negócio dos equipamentos de combate, e em especial no negócio milionário dos meios aéreos (aluguer de aviões e avionetas e outro material) que se vêm os supostos interesses…

Hoje, o combate às chamas é feito junto às estradas e aos caminhos rurais, uma espera com meios muito mais sofisticados do que antes, com mais segurança, mas com muito menos combate onde arde. E pior, muito pior, o cidadão pergunta na rua, cada vez mais, para que serve a Autoridade Nacional de Proteção Civil, para que servem tantos comandantes e segundos comandantes e respetivo aparelho organizativo, que se passeiam todo o ano em modernas viaturas 4×4 e que nos dias de fogo aparecem pelas proximidades das chamas (sem se aproximarem demasiado), em camiões de porte elegante e equipamento sofisticado, para coordenar coisa nenhuma como se tem visto (cabe na cabeça de alguém que um comandante de Santarém possa coordenar o combate a um incêndio na Serra da Estrela?, ou que um comando central em Lisboa pode coordenar o fogo no Algarve como aconteceu na impressionante tragédia de há dois anos?):

O inacreditável investimento em meios de combate, comunicações, vigilância e formação de bombeiros serve para aliviar consciências, mas não para parar o flagelo. Depois de dois meses de calor mas com poucos incêndios (junho com temperaturas acima da média e julho anormalmente quente), desde que começou agosto registaram-se 1.400 incêndios no país, 50 dos quais com mais de 100 hectares de área ardida – e só domingo houve 382 ignições! O problema dos incêndios necessita urgentemente de centrar a discussão nas necessárias políticas de território e menos nos instrumentos de combate – apesar do discurso endémico de falta de meios, basta ver o excesso da coluna “dispensável” que partiu do distrito de Castelo Branco para ajudar a combater o incêndio na Serra de Gata (ver vídeo em: goo.gl/ZfqDFW) para perceber que o discurso da falta de meios, hoje, depois de milhões de investimento, é patético. É urgente investir no ordenamento do território, no planeamento e prevenção, no campo, no repovoamento, nas pessoas, na agricultura, nos bombeiros de proximidade (corporações de Bombeiros que são quem melhor conhece o terreno), na limpeza e vigilância e menos no socorro. É urgente acabar com as organizações nacionais e as superestruturas organizativas de proteção civil que consomem os nossos impostos e, como se comprovou no passado fim-de-semana, não servem para nada. Se nada mudar, o país vai continuar a arder, com mais ou menos mão criminosa. E mais criminoso do que o incendiário é o atual estado das coisas.

Luis Baptista-Martins

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