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Não Há Casa Como a Nossa

Ontem à noite, graças ao Google Earth, fui verificar alguns dos locais da minha infância. A poucas centenas de metros de altitude revi, a poucas dezenas de metros de distância, as ruas de Moisselles e de Saint Denis. Pouco mudaram, em mais de trinta anos. Revi a fábrica, em Moisselles, a mansão do patrão (alcunhado de “Banana” pelos empregados) em frente à igreja, a minha escola, a via rápida para Domont, de que eu vi iniciar-se a construção em meados dos anos sessenta. E no acesso à vila recordo, à esquerda, quando se desce, aquele caminho em direcção à cerejeira grande (onde descobrimos um dia, coberto de moscas e vermes, o nosso cão morto). Recordo ainda, vejo-o, graças ao Google Earth, o pátio da fábrica, onde li pela primeira vez um livro, uma versão infantil do Quebra-Nozes, e onde deparei com a primeira das muitas palavras difíceis da minha vida: “perpendiculaire”. Graças ao rato do computador subo a rua que vai dar à escola. Recordo, como se fosse hoje, o primeiro dia. A saída em fila ordenada da sala de aulas, dois a dois, as mães ao fundo e entre elas a minha. A minha corrida desesperada para ela, ignorando a lei e a ordem. Foi há quarenta e um anos.

Lembro ainda a minha colega espanhola, convertida em tradutora nas encomendas dos “cahiers” e dos “crayons” que eu deveria pedir aos meus pais (era-me mais fácil perceber a professora, mas não sabia como o explicar). Ou a surpresa geral, no segundo ano, quando se descobriu que eu, apesar de ser português, era o melhor aluno. E as vezes que ouvi dizer, com menos de dez anos: “sale portugais, retourne à ton pays”.

Revejo agora a rue des Bleuets, em Saint Denis. Vivia lá em 1969. A poucas centenas de metros de distância os buldozzers arrasavam o “bidonville”. Dentro em pouco iriam construir-se as habitações sociais onde seriam realojados os imigrantes. Noutra direcção, também muito perto, em direcção ao aeroporto do Bourget, os HLM nasciam como cogumelos. Muitos dos meus colegas de escola, na altura maioritariamente franceses, viviam lá. Os imigrantes eram tolerados, apenas tolerados. De vez em quando havia um incidente, como quando o meu tio Zé apareceu em casa marcado como um Cristo, espancado por um bando de jovens franceses, mas eram excepções. Quanto a mim, de vez em quando tinha de acertar contas na “cour” com um colega, desejoso de bater num português, mas é também verdade que os meus melhores amigos eram franceses.

A França precisava de mão-de-obra. Eram os tempos de De Gaulle e de Pompidou. Vivia-se uma década fantástica de crescimento económico, aparentemente imparável. Havia emprego para todos e a classe média trocava de carro todos os anos. E mesmo assim os franceses olhavam-nos de lado. Mesmo assim havia muitos que nos desprezavam e nos faziam sentir que não pertencíamos lá. Isto antes de a economia abrandar, de chegar o desemprego, de haver franceses a querer sujeitar-se aos trabalhos que estavam antes reservados aos imigrantes.

Regressámos a Portugal num dia de verão de 1970. Apesar de ter apenas dez anos e de deixar para trás os meus melhores amigos, apesar de pouco saber do meu país, de onde tinha saído com apenas quatro anos, eu sentia que estava a voltar a casa.

Por: António Ferreira

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