O passado fim-de-semana voltou a trazer a Belmonte autores e pensadores de relevância nacional para falar de letras e livros, de pensamentos e ideias, e para debaterem a religião – ou as religiões, um dos temas de debate no festival literário “Diáspora” numa das vilas portuguesas onde o peso da memória é mais forte e mais terrível
Muito para além da paisagem e do horizonte que se alcança, em especial do seu castelo, Belmonte exibe ruas e casas antigas, museus e monumentos, e sobretudo memória. Estando esta, inevitavelmente, ligada à religião, o debate inicial do “Diáspora”, moderado pelo padre Carlos Lourenço, ocupou-se de tensão e coexistência entre as três religiões do Livro, em particular entre o cristianismo e o Islão. Os recentes acontecimentos em Paris e no Médio Oriente concentraram parte da atenção de uma abundante audiência sentada nos bancos da igreja de Santiago e deram ao tema uma sentida oportunidade. Jaime Nogueira Pinto falou da rápida expansão inicial do Islão e do seu avanço pela Europa, antes das humilhações coloniais que passou a sofrer a partir do século XIX (referência a dois textos de Eça de Queirós sobre o renascimento moderno da “jihad”) e do fim do império otomano com todas as suas sequelas; as muitas guerras com Israel representaram outras tantas humilhações; no último quartel do século XX, o Ocidente apoiaria a luta islâmica contra os soviéticos no Afeganistão, antes de lançar a primeira guerra no Iraque e depois a segunda. «Um erro», segundo Nogueira Pinto, para quem «os conflitos ditos religiosos» são guerras pela defesa de uma identidade social.
A sua intervenção, seguida por outra de Pedro Mexia, que aludiu a versões radicais do cristianismo (o calvinismo, entre elas), e do jornalista Nuno Tiago Pinto deram origem a um debate com membros da audiência que meditaram no assunto e mostraram discordância com o que ali se disse ou acharam que devia ter sido dito mais alguma coisa sobre eles e as suas convicções.
Os debates dos dias seguintes tiveram um cariz mais literário. No sábado à tarde, o Museu Judaico recebeu Inês Pedrosa e Andréa Zamorano para uma conversa sobre Portugal e o Brasil. Foi um encontro animado, com as duas romancistas – uma brasileira a residir em Portugal há duas décadas e uma portuguesa que vai com frequência ao Brasil e tem agora um romance (“Desamparo”) sobre uma emigrante que regressa a Portugal – com a discussão a fugir para o acordo ortográfico e o impasse argumentativo habitual quando se fala do assunto. Para que conste, Zamorano é a favor, Pedrosa contra. No fim da sessão, Mário Cláudio resumiu bem o debate ao dizer que se trata de «algo insolúvel», pois é «uma questão afetiva». O domingo começou com a inauguração de uma exposição de ilustrações de Afonso Cruz, também romancista. Depois houve uma visita ao Museu dos Descobrimentos e o festival transitou para o Ecomuseu do Zêzere, antes de Tânia Ganho e João Paulo Cuenca falarem de cidades literárias. O “Diáspora” terminou com uma conferência sobre a relação entre criação contemporânea e património proferida pela antiga ministra da Cultura Gabriela Canavilhas.
Luis Baptista-Martins