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Murro no estômago para quem comprou discursos fáceis

E de repente o País acorda. Com os sacrifícios, as medidas, os pacotes, os anúncios de austeridade e privatizações, a maioria absoluta e um governo finalmente “credível” temos hoje mais de 60% de possibilidades de entrar em bancarrota. Um murro no estômago? Só para quem teve preguiça. Quem não resumiu a crise às desventuras domésticas, quem se deu ao trabalho de se manter informado, quem teve a honestidade intelectual de perceber, independentemente dos seus ódios políticos, que o que se passa é bem maior do que as tricas nacionais não pode ter ficado espantado.

Escrevi várias vezes, nos últimos dois anos, que, mesmo que tivéssemos tido um excelente primeiro-ministro (e estivemos bem longe disso) não estaríamos em muito melhor situação. Nem Sócrates é da minha cor política nem tenho por ele qualquer simpatia. Acho mesmo que, depois de Cavaco Silva, foi o pior primeiro-ministro que a nossa democracia conheceu. E que uma parte da esquerda vai pagar por muitos anos a factura de ter apostado num homem sem convicções políticas nem perfil ético para chefiar um governo. Mas, perdoem-me, não consigo, independentemente das minhas opiniões sobre qualquer político, fingir que uma coisa é o que nunca foi.

Esta crise não é nacional; a nossa vulnerabilidade resulta mais da dívida externa – que teve a ver com erros de décadas e com uma moeda que não foi pensada para economias como a nossa – do que com a dívida pública; e somos um dos alvos do ataque ao euro porque somos, como a Irlanda e a Grécia, uma economia periférica de uma Europa liderada por egoísmos nacionais. Podíamos ter feito muitas coisas diferentes. Mas para as coisas que podíamos ter feito não chegavam seis anos. Sócrates não as fez. Nem Durão, nem Guterres, nem Cavaco. A parte da nossa culpa, que está longe de ser a maior parte, é a escolha errada de um modelo de desenvolvimento e a obsessão pueril em ser um bom aluno europeu.

Gostava que a culpa do que se passa tivesse sido de Sócrates. Não tanto por ter por ele pouquíssimo respeito político, intelectual e ético. Mas porque os nossos problemas seriam bem mais fáceis de resolver. E de todas as vezes que escrevi tudo isto fui logo acusado de socratismo. Porque o debate político em Portugal se resume a isso mesmo: ou é simples ou é traição.

Mas sabem o que realmente me assusta? Pensar que quem andou a fazer o discurso fácil sobre esta crise acreditava mesmo nele. Prefiro que tenha sido apenas propaganda. Ser governado por gente politicamente pouco séria é mau. Mas, com o que temos pela frente, seria bem pior ser governado por ignorantes.

A única vantagem, triste e deprimente vantagem, do que agora está a acontecer é a de, com um governo ainda em estado de graça e uma comunicação social dominada por opinadores que nunca esconderam a sua simpatia pela sua agenda ideológica, vamos começar a tentar discutir as verdadeiras razões desta crise. E isso obrigará a pôr em causa muitas verdades feitas e soluções irresponsáveis. Repito aqui o que disse sobre Sócrates: o que está a acontecer não resulta da falta de credibilidade de Passos Coelho ou das suas propostas. Se assim fosse, seria fácil. Bastava não o ter eleito. A crise é europeia. A solução é europeia.

Agora, por favor, não venham pedir mais unanimismos patrióticos. Foi por causa deles que comprámos tanto disparate sobre esta crise e agora tanta gente sente que levou um murro no estômago. Esta crise não é fácil de perceber e de resolver. E do que não é fácil resulta a divergência. E só da divergência, a inteligência. E só da inteligência, as soluções.

Por: Daniel Oliveira

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