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Mundidevaneio

Iniciado há pouco mais de uma semana, o mundial de futebol entra-nos, diariamente, a todos os instantes, pela casa dentro, mesmo com portas e janelas fechadas. Ligamos a televisão e lá está uma publicidade, uma notícia, uma reportagem sobre alguém que tem dupla nacionalidade e que está dividido entre a nossa e outra selecção, outro que se priva de não sei quantas coisas para poder comprar a viagem e o bilhete, o copinho de leite com mel que Pauleta bebe antes dos jogos como amuleto da sorte…enfim, atrevo-me eufemisticamente a afirmar que metade dos nossos telejornais diários são dedicados ao mundial.

Saímos de casa com esperança de que a realidade lá fora seja um pouco diferente, mas depois entra-se no carro, liga-se o rádio e lá está o mais importante dos temas: o mundial de futebol. Paramos na pastelaria onde costumamos habitualmente beber o nosso café matinal e ler tranquilamente o jornal do dia e somos obrigados a ouvir os comentários do vizinho do lado que se mostra surpreso com este ou aquele resultado e que faz já prognósticos para o futuro jogo dos lusitanos. Tentamos abstrair-nos daquela conversa e começamos finalmente a folhear os jornais… NÃO!!! Não é possível!! Até os jornais informativos foram apanhados nesta corrente futebolística, ocupando a maior parte das suas páginas com notícias de carácter desportivo. Porém, resta-nos ainda o trabalho e as certezas de que aqui certamente nada mudou…aqui falar-se-á de saúde, de gestão, de política, de pedagogia, de desemprego, de burocracia, de contas, de dívidas, mas… as certezas começam a dissipar-se assim que colocamos o pé do lado de lá e nos apercebemos que o tema de conversa é o jogo de ontem ou de amanhã, PIOR, as discussões que se travam sobre “Como é que vamos ver o jogo logo às 3 da tarde?” ” – A essa hora, por azar, tenho uma reunião.” “Eu tenho que atender os clientes…”

Salvaguardando-me de possíveis contra-ataques, assumo, antes de mais, que sou uma adepta do desporto e sobretudo uma amante de futebol e da nossa selecção. Uma apaixonada que grita com os golos e rejubila com a vitória mas penso, como diz sabiamente a máxima popular, tudo o que é demais é perdido, e preocupa-me ver um país inteiro em completo devaneio futebolístico.

Fale-se em futebol ou em festas e os campos enchem-se. As pessoas saem às ruas em massa, bebem o sabor amargo das derrotas quotidianas, brindam a uma nação que tantas vezes ignoram e desprezam e festejam momentaneamente o paladar da vitória.

E a educação, o analfabetismo, os milhares de desempregados, o mau tempo que tem devastado culturas, os incêndios que já começam a ameaçar a nossa floresta, a violência física e psicológica de que tantas vezes somos vítimas?

Não vejo bandeiras humanas erguidas para apoiar as vítimas da violência que há nas nossas ruas, nas nossas escolas e inclusive nas nossas casas, não vejo cordões humanos virtuais unidos para lutarem contra a destruição do ambiente e do nosso país, não ouço vozes suficientes cantarem e dignificarem “o peito ilustre lusitano”, não vejo um país engrandecer, vejo o triste fado de um país iludido e preso às amarras do destino.

Chamar-me-ão Velha do Restelo? Talvez… com uma diferença, eu também embarco nesta viagem, eu também anseio muito que a nossa selecção passe todos os cabos das tormentas e dê como no passado fama e glória a Portugal, mas sempre consciente de que na ocidental praia lusitana há mulheres e filhos que aguardam angustiosamente o regresso de vidas humanas e um pouco de pão para matarem a fome.

O futebol faz efectivamente parte da cultura de um povo, mas não permitamos que ele, por si só, seja a cultura do povo…

Por: Cláudia Fonseca

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