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Muita água

Editorial

Nasceu a maior empresa da Guarda. Vai faturar anualmente mais de 200 milhões de euros. E tem mais de 1200 trabalhadores, a laborar entre a Mêda e Portel, no longínquo Alentejo. E 3,7 milhões de clientes, de Almeida a Odivelas. Tem quase uma centena de sócios, nomeadamente 88 municípios, mas o primeiro presidente da Mesa da Assembleia é a Câmara da Guarda. Sucede a oito sistemas multimunicipais de águas do Côa ao Estoril, de Óbidos ao Marvão. A sede é na Guarda, mas o trabalho é feito de forma especializada nas diferentes delegações da empresa, em Castelo Branco, Portalegre, Caldas da Rainha, Lisboa, Setúbal, Cascais ou Évora…

Há muitos anos que ouvimos falar de descentralização, de regionalização, de coesão territorial e, por muito que pelo Terreiro do Paço teimem que não, só há duas formas de corrigir as assimetrias, com investimento público ou administrativamente. A descentralização é determinante para a mudança de organização do território e essencial para fomentar a coesão do país. Mas do discurso à prática foi sempre uma enorme distância. Por cada serviço que era aberto em alguma cidade do interior, encerravam-se vários outros nas vilas ostracizadas; por cada serviço aparentemente promovido no interior, era em Lisboa que se impulsionava mais alguma forma de centralidade. Foram anos de palavras vãs, de discursos carregados de ilusão mas de decisões castradoras de qualquer forma de descentrar. Os anos passaram… e Portugal não muda, é Lisboa e o resto é paisagem.

Há dez anos, Pedro Santana Lopes (PSL) levou a Secretaria de Estado da Agricultura para o campo. Instalou-a na Golegã, terra de cavalos e touros, por uns meses, porque o governo seguinte, de Sócrates, anulou a decisão e mandou regressar a Lisboa meia-dúzia de funcionários que se entretinham entre a Feira do Cavalo e a Reserva Natural do Paul do Boquilobo. Mas o país político e cultural (e jornalístico) achava a ideia de Santana Lopes uma parolada e em Lisboa há muito mais agricultura e agricultores do que no Ribatejo…

A “tentativa” de PSL foi apenas uma das muitas que, esporadicamente, algum governo ou um ministro mais alienado tomaram contra o domínio do Terreiro do Paço sobre tudo e todos. Mas todas condenadas ao insucesso. Todas mortas à nascença, à punhalada, à gargalhada ou aos gritos contra qualquer veleidade descentralizadora.

O exemplo da Golegã, porém, é um péssimo exemplo de desconcentração de poder “central”. Foi o que não deve ser. Em vez de começar por levar a superestrutura, é necessário iniciar o processo pelo ordenamento, pela organização de base, permitindo depois que o centro nevrálgico da superestrutura possa ficar a mais de uma hora do Terreiro do Paço (o que não é muito admissível para os grandes “decisores”).

Foi isso que este governo decidiu fazer. Criticado por não fazer reformas, eis que reformou o sistema de estruturas das águas, promoveu o princípio da subsidiariedade, pondo Lisboa a pagar uns cêntimos mais pela água – que afinal vai das beiras, da Serra da Estrela e do Tejo e cujos municípios a pagavam mais cara do que Lisboa – e operacionalizou a empresa Águas de Lisboa e Vale do Tejo em diferentes “bases” (delegações), com sede na Guarda. Não trará muitos postos de trabalho diretos, mas contribuirá para uma dinâmica e uma redefinição do ordenamento do território e da coesão territorial. A AdLVT passa a ser a maior empresa da Guarda, e aqui terá de pagar impostos, terá o seu arquivo, a sua base, a sua sede. E infelizmente a sede só não terá a sumptuosidade merecida por razões nunca explicadas e uma estranha influência da Câmara da Guarda de então (com Maria do Carmo e Joaquim Valente à cabeça) que levou a empresa Águas do Zêzere e Côa a comprar uma cave, onde agra irá funcionar a AdLVT, em vez de adquirir e recuperar um edifício de valia arquitetónica e que dignificaria a empresa, a cidade e a região (todas as sedes das empresas de águas são em solares adquiridos e recuperados, só a da Guarda foi para “os baixos” de um edifício sem qualquer interesse arquitetónico e longe do centro). Talvez agora haja uma nova oportunidade de fazer aquilo que há uma dúzia de anos «mais altos interesses» impediu.

Luis Baptista-Martins

Comentários dos nossos leitores
João José migueldeunamuno2015@gmail.com
Comentário:
Carneiro Jacinto não era socialista? Não era o assessor de Soares na presidência? Estará a ver se apanha o comboio do poder agora pelo lado de Santana Lopes? Quem diria…
 
António Carneiro Jacinto antoniocj@sapo.pt
Comentário:
Tem toda a razão. A instalação deste novo serviço público de dimensão nacional na Guarda só pode ser por investimento público/privado ou administrativamente. É justíssimo que relembre algumas decisões de descentralização administrativa, tomadas vai para 11 anos pelo então Primeiro-Ministro Pedro Santana Lopes. Permita-me que acrescente à referida Secretaria de Estado da Agricultura, mais cinco: Turismo (Faro), Cultura (Évora), Educação (Aveiro), Juventude (Braga) e Administração Local (Coimbra). Infelizmente, Pedro Santana Lopes não teve tempo para consolidar esta verdadeira revolução. Era sua intenção na altura deslocar também a sede do Ministério da Economia para o Porto. Pelos vistos, na sua opinião um Governo que infelizmente durou pouco mais de quatro meses em efectividade de funções, devia, ter começado “pelo processo do ordenamento, pela organização de base, antes da superestrutura”. Com a Administração Pública que temos devia ter sido lindo… Ainda agora estaríamos a recordar os diversos edifícios que teriam estado em cima da mesa para instalar a Secretaria de Estado. Repito, a decisão de PSL foi uma verdadeira pedrada no charco. Assim tivesse tido tempo para pôr em prática todas as suas ideias. Em breve, tenho a certeza de que ele irá ter oportunidade de chocar, mais uma vez, o País político, cultural e jornalístico (de que sempre farei parte) com mais ideias inovadoras, também em matéria de descentralização. Desta vez não o vão apanhar desprevenido e ele vai mesmo ter tempo de pôr em práticas todas as suas (muitas) ideias. Não esperem pela demora. António Carneiro Jacinto.
 

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