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Maquiavel

Dexter é o protagonista de uma série que acaba de estrear na televisão. Durante o dia é um respeitado e simpático técnico do laboratório da polícia de Miami, de noite é um “serial killer”. Nada de muito grave, que Dexter tem os seus próprios princípios: não mata qualquer um, apenas mata assassinos. É uma espécie de vigilante, fazendo justiça pelas próprias mãos e corrigindo os erros e a incompetência da polícia. Ao concluir que tem pulsões assassinas incontroláveis, decidiu orientá-las . Escolheu no fundo o “mal menor” – é errado matar, mas é menos errado matar quem merece morrer. É claro que a tese de Dexter é insustentável. O seu estilo de vida nocturno é uma caução da pena de morte, com a diferença de que os seus “condenados” não têm sequer direito a defesa. Dexter acumula em si os papéis de investigador, julgador e carrasco. Não há lugar aqui para advogados de defesa nem espaço para qualquer tipo de redenção. E, no entanto, é apresentado perante o público como uma personagem “simpática”, positiva. Há um trabalho sujo que tem de ser feito e Dexter está disponível para o fazer.

A estreia da série causou celeuma na América e passou quase despercebida em Portugal, não fossem as referências do “Público”. Não vai haver cartas de protesto, manifestações à porta da RTP (é que a televisão pública ganhou o exclusivo para Portugal) ou qualquer movimento cívico a exigir a suspensão da série. Por um lado, quase ninguém vê a RTP2; por outro, está-se toda a gente nas tintas para os problemas éticos que o programa levanta. Por outro ainda, no fundo a maioria concorda com os métodos expeditos de Dexter. Afinal de contas, ele consegue fazer mais do que a polícia e cada um dos seus assassínios implica a salvação de vários inocentes. Ele mata, salvando vidas. Os fins, mais uma vez, justificaram os meios.

Esta relativização dos valores é muito comum entre nós. Apesar de a palavra “corrupção” ser muito feia, acarretando consigo evidentes desvalores, há mais tolerância em relação aos actos em que ela se traduz. Assim, ninguém gosta de se ver chamado corrupto, ou vendido, mas poucos são os que não pediram nunca uma “cunha”, ou um “jeito”. Ou sequer reflectiram um pouco sobre o próximo que estão os “jeitos” e as “cunhas” da pura e dura corrupção. Há também uma coisa chamada “eleições”, que é no fundo a forma que têm os eleitores civilizados de recusar a corrupção e de afastar aqueles sobre quem haja suspeitas, e bastariam estas, da sua prática.

Mas isto é Portugal. Os únicos valores que aqui têm cotação são os imobiliários, e estão em baixa. Os corruptos são reeleitos com louvor e aclamação, em autênticos plebiscitos. Os seus actos, o seu enriquecimento à custa de todos, são justificados pelos eleitores em troca dos fontanários, das rotundas e dos pavilhões multiusos atribuídos ao seu génio criador. “Roubam, mas fazem”. E a nossa cegueira colectiva impede-nos de perceber que não é de rotundas que precisamos. Dexter pode continuar a matar à vontade, que nunca lhe encontraremos uma alternativa.

Por: António Ferreira

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