Escrevo momentos após ter terminado o jogo de futebol que serviu para a angariação de fundos para contribuir para minorar o sofrimento dos haitianos. Antes, passaram algumas notícias relacionadas com o tema:
Uma associação de Coimbra dedicou-se a recolher medicamentos junto de farmácias da região e vai enviá-los para o Haiti;
Uma outra associação vai enviar alimentos;
Uma outra propõe-se ajudar enviando médicos e outros técnicos de saúde;
Um miúdo britânico fez aquilo a que chamou “uma volta de bicicleta” para angariar 500 libras para o mesmo tema. Vai já em cem mil…
É. O Haiti é longe e já ali ao virar da esquina, no ecrã da televisão. Isto enquanto nos refastelamos no aconchego do sofá. O Haiti e o sofrimento. O Haiti e a tragédia. O Haiti que nos entra olhos adentro a provar até onde é possível sofrer. O Haiti que, nascido da revolta de escravos se tornou no primeiro país independente do continente americano, nunca mais parou de sofrer. Foi agora a Natureza, madrasta, a lembrar que é preciso respeitá-la. Foram, antes, os Raoul Magloire, os Papa Doc e Baby Doc, os Jean-Bertrand Aristide… Ditaduras que conduziram o país a um estado tal que, hoje, é o mais pobre de todo o hemisfério ocidental.
Não se culpe pois apenas a Natureza e os seus humores. Condene-se a intervenção humana que permitiu a existência de uma Port-au-Prince medieval, caótica, desumanizada. Condene-se o apetite voraz dos sucessivos governantes que, é bom lembrar que no Haiti o século é também o XXI, levaram a que a esperança média de vida ronde os cinquenta anos e que mais de metade da população seja analfabeta.
Mas tudo isto é tão longe!… E, ao mesmo tempo tão perto, ali na caixinha mágica… Essa mesma que nos mostra o sofrimento angustiante dos feridos, as caras desfiguradas dos mortos, os corpos abandonados nas valetas, os zombies que vagueiam nas ruínas na esperança de encontrar os seus… Ah, e os abutres que espreitam a cada esquina a oportunidade de pilhar mais uma qualquer “riqueza” escondida nos escombros daquilo que já foi uma cidade.
Percebo a necessidade de informar neste mundo cada vez mais global. Percebo que haja centenas de jornalistas das sete partidas do mundo naquela meia ilha. Não percebo que seja trazido à ribalta este tipo de informação espectáculo que se transforma em puro voyeurismo. Não percebo qual a necessidade, qual a importância jornalística, de mostrar grandes planos expondo até ao tutano o sofrimento atroz de pessoas que não são apenas mais um algarismo nas estatísticas. São pessoas e devem ser tratadas com dignidade. Esse papel educativo também é, ou deveria ser, apanágio da comunicação social.
Afinal, à comunicação social pede-se também que forme além de informar.
No entanto, apesar de tudo, uma coisa se conseguiu: o Haiti é hoje mais perto e abalou consciências, chamou a atenção para a solidariedade e para a partilha.
A minha filha, de 14 anos, perguntava-me há dias:
– Pai, não queres adoptar uma daquelas crianças?…
Com tudo isto, eu, que até pensava escrever sobre o Orçamento de Estado e a sua aprovação, desisti. Afinal, isso são números, apenas números… Por muito que nos doam…
Por: Norberto Gonçalves