De há um mês para cá a palavra “liberdade” enche-nos a boca e os ouvidos e as verdades gastaram-se nas bocas dos outros. Não faz mal. Vamos repeti-las de outra maneira.
1. Curiosamente a liberdade de imprensa, a que esteve em causa, não é a maior preocupação dos cidadãos, que desprezam na sua maioria a imprensa livre, a que procura a distância e faz pensar. A outra, a de títulos vermelhos e impressivos que iludem o leitor e lhe apressam a reação emotiva e a fofoquice, essa sim, está na onda. Vemo-lo todos os dias nos cafés, quase unanimemente convertidos aos mesmos jornais e revistas, feitos produtos-imagens digeríveis entre um café e um bolo. Também os cartoons criam na maioria a aversão a quem “exagera”, a quem “provoca”. Somos apreciadores dos “provocadores” de há 100 ou 200 anos mas os de hoje são duros de roer. Ateísmo, contestação da moral tradicional, provocação de fanáticos de outras religiões, apologia de ideias ultraconservadoras ou ultraesquerdistas, isso não. Respeitinho, sim! E esquecemo-nos que este campo, o da liberdade de imprensa, está cheio de contradições e interesses que transformam a informação, de donos anónimos e jornalistas pouco convictos e preocupados em ganhar a sua vida, de biombos de notícias com alçapões escondidos a engolir-nos e elevadores que sobem os prédios e voam para as nuvens. A liberdade de imprensa resulta assim num chavão, com o nosso horror ao rigor, à análise plural e às margens. Ser anónimo num qualquer blogue, isso sim, é normal, porque permite atirar o cocktail e manter a máscara.
2. A liberdade de que gostamos de falar (e que os islamistas supostamente odeiam) tem sobretudo a ver com o nosso estilo de vida baseado no direito à felicidade, a subir na vida e a adquirir objetos que nos encham. É assim a vida no Ocidente. Tem a ver com a conquista de um trabalho e de uma profissão que façamos com gosto e prazer e nos realize, para além de nos pagarem por ela. Não se concretiza verdadeiramente sem o gozo de conquistar uma alma gémea e de deixar uma marca nesta vida e se possível com a nossa descendência. Não passa sem a conquista de tempo, cada vez mais tempo, tempo livre para o lazer do próprio ou o proveito do núcleo mais próximo. Alarga-se com a auto-oferta de bens simbólicos, objetos distintivos ou prazeres que transformámos em necessidades, como as viagens ou os espetáculos. Confirma-se na excitação feita atração pelas miríades de ecrãs que povoam qualquer lugar onde entremos, casas ou estabelecimentos (70% dos jovens têm televisão no quarto, soube-se agora).
Por isso a marca da liberdade é urbana e a atração pela ruralidade é um fenómeno pouco moderno. O século XXI é mesmo o século das cidades. Tendo as autoestradas do interior criado ilusoriamente as condições para a manutenção das pessoas, esquecemo-nos de que elas nos levavam mais depressa para o litoral e as grandes cidades. António Barreto diz que o tempo do despovoamento do interior é inevitável, não tendo isto que significar necessariamente abandono. Não há no entanto esperança. Vive-se bem na Guarda mas dificilmente haverá condições para no futuro haver atratividade tanto no plano empresarial como no turismo ou nos estilos de vida. A Guarda vai minguar com esta “dinâmica demográfica” sem ventos contrários.
3. A liberdade, que em Portugal datamos com o ano de 1974, não faria sentido se não lhe juntássemos a conquista da democracia com o direito à opinião e à expressão dela e o direito de elegermos quem nos represente e governe e de depormos quem achemos que está a mais. Já a ideia de paz, que sempre ligamos à de liberdade, tem mais que se lhe diga. O modo natural de vida das sociedades humanas, quase o seu código genético, tem sido desde sempre o conflito e a sua resolução pela força (a cólera, nas palavras do filósofo Peter Sloterdijk). O equilíbrio entre a contenção e a força na procura de bens, território e poder (noutros casos, na procura da liberdade) é hoje difícil de encontrar, dado o mal-estar civilizacional que vivemos. Ultrapassada a crença no paraíso da religião, verificados os bloqueios que permanecem mesmo em regimes democráticos, ultrapassados os “amanhãs que cantam”, também eles paraísos futuros desenhados nas bandeiras vermelhas mas que nunca mais chegavam, resta hoje o vazio da globalização que procurámos mas que, paradoxalmente, nos condena. Diz José Tavares: «A paz eterna do consumismo real e da participação cívica regular no Ocidente são atacados no seu prestígio no momento exato em que se universalizam, para o bem e para o mal». Resta-nos a cólera, a indignação, mas mitigadas e na rua, já que poucos acreditam hoje em revoluções (as últimas não viraram para o sentido “certo”). Conflito e cólera sempre existirão: a democracia (com a “luta” centrada no político) e o capitalismo (com regras de circulação do dinheiro) canalizaram-nos, sublimaram-nos, evitando o sangue, mas hoje mostram-se insuficientes. A liberdade pode num regime democrático aceitar o recurso à indignação feita violência, como hoje às vezes defendemos? Está por provar que isto seja uma solução e não apenas o sintoma.
(XXI Ter Opinião 2013, “Adeus liberdade. Viva a Liberdade!”, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013)
Por: Joaquim Igreja