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Leitura política da katyzinha6

Portugal já tem a sua primeira estrela inusitada do YouTube. É uma adolescente do Porto, de aspecto pouco convencional, gordinha e generosa no calão, que gravou um vídeo no quarto a dissertar sobre ‘moda mitra’. Teve dezenas de milhares de pageviews, entre fans e haters. Dias depois, ofuscada pela fama fez-se filmar a fazer asneira numa sala de aula, chamou a atenção do “Correio da Manhã”, da RTP e da Fenprof e eclipsou-se. Mas se nos circunscrevermos ao vídeo de estreia de katyzinha6, “Cortes e Decotes”, podemos ver um relato de um Portugal contemporâneo que exige reflexão. Há ali uma alma do regime em todo o seu esplendor, um pouco chunga, de dedo em riste, a insultar familiares dos outros, a esperar dinheiro vindo do céu para gastar em fábricas de sapatilhas. Adidas. Nunca All Stars – que se fosse primeira-ministra ou o c#r#a%# ela proibia essa marca.

Quem está nas redes sociais sabe do que se trata. Só nos primeiros dias dezenas de milhares pessoas viram o vídeo da miúda de sotaque carregado e palavrão na ponta da língua a fazer julgamentos definitivos sobre fio dental e rego à mostra. Na vaga internetiana sobre o fenómeno foi o horror moralista quanto ao ‘baixo nível’ da linguagem e a grelha mental da katyzinha6. Um imenso relambório blogosférico de gente entre os 30/35 anos – a ex-geração rasca. Ah, como me lembro de cobrir as manifs das PGA, rabos e pirilaus, rimas com a ministra da Educação Manuela Ferreira Leite, hoje a regurgitar odes à salvação da juventude.

Voltemos pois à katyzinha6 e aos seus conselhos de moda. Há ali uma incorporação de forma feérica de uma subcultura teen não dominante por uma miúda fora dos padrões estéticos de modo galhardamente autoconfiante. Nas caixas de comentários ela tem o apoio dos portuenses que defendem o purismo do sotaque, dos que se sentem oprimidos pelo culto da beleza e as que sentem firmeza de um certo poder no feminino naquela teen disfuncional. Sim, tem esse lado. Eu, que cultivo as minhas obsessões, vi o símbolo de uma alma socrática…

Hoje o grande fenómeno de TV nos EUA chama-se “Jersey Shore”, passa na MTV Portugal e é um Big Brother de porta aberta onde se promove uma cultura guidos (ítalo-americanos) bronzeados de solário, de sobrancelhas arranjadas, tatuagens e caparro, cópias do ‘nosso’ Cristiano Ronaldo, que tentam engatar Nereidas Gallardos mais novitas. Esses pintas também existem cá.

Mas katyzinha6 não está do lado ‘perfeitinho’ e conceptualiza uma estética de “gaija mitra” que não suporta ver outras de “pacote alapadinho às calças com o fio dental de fora” porque senão dá o “maior barraco”. É o ponto que a move: “Há quem diga que sou bimba, mas bimba é a tua mãe. Há gente que se ganhasse o Euromilhões dava a volta ao mundo mas eu não… Eu comprava uma fábrica da Adidas – mas só de sapatilhas (…) O gajo ideal para mim é um gajo que anda com as calças caídas a mostrar o rego do cu, mesmo à pobre, de sapatilhas, mas nada de All Stars nem essas m#”r%d%, que se eu fosse primeira-ministra ou o c#&r&L& era tudo para abolir essa m#$r#€ All Stars”. Detecta e renega especificidades nacionais: “Ora bem, quanto aos gajos não suporto sapatos de vela. Isso não se usa, nunca se usou”.

Há uma moral katyziana em termos sociais: entre mitras de sapatilhas e doutores que durante décadas nunca largaram o mesmo par de sapatos de vela, ela transmite um DNA muito ligado ao bimbo que não aceita ser manso e lhe salta o verniz a insultar a mãe e as tias dos outros. Nem mais… termos político-económico enquadram-se num projecto tipicamente português que tão maus resultados nos trouxe já que as fábricas de sapatilhas foram deslocalizadas e a esperança de um mítico Euromilhões para gastar em porcarias foi o que nos arrastou até aqui.

Sim, somos cada vez mais mitras e estamos à beira de um grande barraco.

Por: Luis Pedro Nunes

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