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Iraque: Uma guerra encomendada

O «Grande Médio Oriente» (II)

Consumado o primeiro objectivo da invasão do Iraque – o derrube de Saddam Hussein – as controversas medidas de «desbaasificação» do país que se lhe seguiram não tiveram outro objectivo se não desarticular completamente o regime e cortar pela raiz qualquer nova eventual ideia nacionalista por parte dos sunitas.

Os mesmos objectivos terão levado a Autoridade Provisória da Coligação a recusar os apelos xiitas à realização de eleições directas imediatas e a ignorar as suas reservas aos planos de transição política, apesar de haverem sido os maiores opositores ao regime de Saddam Hussein, os que mais sofreram a sua repressão e os que mais apoiaram a invasão. Representando cerca de 60% da população iraquiana, o receio era que uma vitória xiita conduzisse à substituição de um regime nacionalista laico por um outro igualmente nacionalista mas teocrático, reforçando, ao mesmo tempo, o poder do Irão na região, um dos países incluídos por George Bush no «eixo do mal». Mas, ao marginalizar os xiitas moderados acicatou a sua minoria radical, transformando Moqtada al-Sadr no mais forte símbolo da resistência à ocupação. O mesmo erro que levou os norte-americanos a apoiar os talibans entre 1995 e 1998, porque eram antixiitas, logo hostis ao Irão.

Prosseguindo a política de dividir para reinar, a Autoridade Provisória da Coligação foi construindo um projecto de Estado federal, sem tradição no mundo árabe, confundindo confissões religiosas com divisões étnicas e políticas – quando a realidade no Iraque é a da sobreposição das várias escolas corânicas, embora com uma distribuição geográfica heterogénea – projecto que poderá evoluir para uma balcanização do país, a começar pelo Curdistão. E, para reforçar a ideia ocidental que vê no islamismo a nova ameaça global, procurou identificar o Islão com extremismo, quando, na realidade, só algumas facções islamistas muito restritas são realmente integristas e praticam o militantismo, se não mesmo o proselitismo, e a violência terrorista. Numa mesma lógica de enfraquecimento das forças internas, quando confrontada com o primeiro levantamento xiita, a coligação voltou-se, de novo, para os sunitas, reintegrando antigos altos quadros e outros elementos do extinto Partido Baas e das forças armadas e de segurança de Saddam, precisamente aqueles que haviam sido o seu principal inimigo. Por fim, usando a ONU como cobertura para uma aparência externa de legitimidade dos seus projectos, impôs a sua própria solução para o Governo Interino do Iraque, um governo liderado por políticos que se comportam mais como mandatários dos interesses da coligação que dos iraquianos e como autênticos novos tiranos.

Esta deliberada deriva estratégica, agravada pela violência crescente e indiscriminada da repressão levada a cabo pelos novos poderes instalados no país, só poderia conduzir a uma mais generalizada e violenta resistência, tornando uma realidade precisamente aquilo que os EUA têm procurado suprimir: a revolta que exprime a identidade árabe e islâmica do comum dos iraquianos.

Nesta primeira fase, até às eleições presidenciais, o mais importante para George Bush era criar um Iraque débil, instável e conflitual, para justificar a necessidade da presença militar norte-americana no país. Mas, ao fazê-lo, descredibilizou as forças moderadas e reformistas, sunitas e xiitas, e reforçou o poder das tendências mais radicais, hoje a principal base social e religiosa da resistência armada e do terrorismo islamista, que ameaçam cada vez mais a concretização do seu ambicioso plano de um “Grande Médio Oriente”. Um objectivo que visa assegurar o domínio dos EUA sobre as importantes reservas energéticas do Golfo ao Cáspio e que passará pela mudança de outros regimes muçulmanos, do Magreb ao Afeganistão ao Cáucaso e à Ásia Central, segundo o modelo do Iraque, e pelo apoio ao projecto de Ariel Sharon de «politicídio» dos palestinianos – se o eleitorado americano e a resistência islâmica o consentirem.

Em conclusão, a invasão do Iraque foi uma guerra de necessidade, encomendada pelos poderosos «lobbies» judaico, petrolífero, armamentista e militar que suportam a Administração Bush. Os métodos usados foram os mesmos que são imputados a Saddam. Mas este irá ser julgado. Quem julgará George Bush?

Por: Augusto J. Monteiro Valente *

* Major-General

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