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Internet e os fenómenos musicais espontâneos

Atmosfera Portátil

A internet veio revolucionar o mundo. Já é um lugar-comum dizê-lo. Democratizou-se o acesso à informação e qualquer cidadão, em qualquer parte do mundo, pode mostrar revelar o seu talento (ou falta dele) e ir à procura dos tais 15 minutos de fama. Mas há fenómenos que ultrapassam a compreensão imediata. São, na realidade, verdadeiros “case study” para os estudiosos da sociedade da informação digital. Mesmo sabendo quão repentina, fácil e global pode ser a fama através da Internet, continuo sem perceber o que está na origem e propagação de determinados casos. Refiro-me ao caso da cantora Ana Free. É portuguesa (pai inglês) e vive em Inglaterra. E quem é Ana Free? Pesquise-se o seu nome no Google. O Google devolve mais de 6 milhões de resultados na Internet. Coloque-se o seu nome no YouTube e surgirão dezenas de vídeos da dita cantora filmados de forma absolutamente caseira e acompanhada apenas da guitarra acústica, a cantar canções originais e algumas versões de temas comerciais famosos (Rolling Stones, Ben Harper, Nickelback…). Alguns desses vídeos contam com mais de meio milhão de visionamentos. Meio milhão para alguém que era totalmente desconhecida há um par de meses, não tinha qualquer disco editado nem concertos realizados, nenhum apoio do circuito comercial e trabalho zero ao nível do marketing ou da publicidade. Só recentemente editou um single que toca insistentemente na rádio – “In My Place” – e saltou para o primeiro lugar do top iTunes Portugal. O sucesso abrupto de Ana Free foi aproveitado para uma publicidade televisiva da Zon, e vai daí, saltou para diversos programas de entretenimento da nossa televisão, o que lhe garantiu ainda mais exposição mediática. O efeito bola de neve não mais parou e Ana Free vê-se, de repente, envolta em capas de revista e entrevistas em jornais, rádios, televisões…

Nos últimos dois anos surgiram diversos grupos e músicos que despontaram para o êxito maciço a partir da Internet como única plataforma de promoção (dos Artic Monkeys a Mika), mas o caso de Ana Free reveste-se de contornos ainda mais extremos em termos de disseminação virtual. A questão coloca-se deste modo: Ana Free é uma intérprete (cantora e guitarrista) absolutamente mediana, como há milhares de outras em todo o mundo – e repare-se que o Myspace tem 8 milhões de bandas/músicos amadores registados. Não canta mal, é certo, toca guitarra como mandam as regras, mas não se lhe vislumbra uma centelha de criatividade ou originalidade na abordagem musical que a distinga de milhares de outras cantoras. Colocou os seus vídeos no YouTube como milhões de outros jovens. Tem legítimas aspirações ao estrelato como milhões de outros jovens. Ora, como foi possível que uns vídeos caseiros de uma vulgar jovem a cantar umas canções acústicas insossas tenham servido de base para tamanha exposição planetária, quando há milhares de outros músicos amadores (porventura bem mais talentosos e inspirados) que não conseguem tal feito? Como se propaga, na sociedade da comunicação digital global, um fenómeno destes, em detrimento de tantos outros? O problema é que, da mesma forma como surgiu de rompante este fenómeno, que continua a crescer, poderá com a mesma velocidade estatelar-se no limbo do esquecimento.

E já não chegava uma Ana Free, agora temos um novo fenómeno musical português do YouTube: Mia Rose (Maria Antónia Sampaio Rosa, de seu nome verdadeiro). Tudo à custa do facilitismo da internet. Agora só falta esperar pelos próximos talentos musicais da internet. A receita: carinha laroca, 20 aninhos, guitarra acústica a tiracolo, cançonetas da praxe e versões de canções de Brian Adams ou Jon Bon Jovi. Será que vêm aí uma Joana Flowers, uma Rita Joyce, uma Marisa Brandon, ou, talvez, uma Lara Thompson? É esperar para ver…

A Internet pode ser o “eldorado” das oportunidades, mas também pode tornar-se no cemitério súbito para aqueles que se deslumbram com o sucesso fácil e repentino. Concluindo: daqui a uns anos poderemos ter esquecido completamente o nome de Ana Free ou de Mia Rose, ou então, poderemos vê-la a encher o Parque da Bela Vista num mega-concerto para 80 mil pessoas. Esperemos para ver.

Por: Victor Afonso

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