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Insónia

Deita-se na cama, procura uma posição para tentar sossegar, mas não consegue. O pensamento dá-lhe voltas e mais voltas – e o corpo vai atrás, dando também voltas e mais voltas. Outras vezes, é o contrário: o corpo não pára e o pensamento segue-o. Ela acha que não adormece para não ter de acordar. Os últimos tempos foram-lhe atirados como se atira uma lança a um alvo e se acerta em cheio. Os movimentos da sua vida começaram a trocar-se: quando queria andar, parava. Dizem que há sinais a preceder as catástrofes, mas o desastre aconteceu-lhe sem aviso. Subitamente, quase tudo se desmoronou. A derrocada do seu mundo deixou-a “sem tecto, entre ruínas”. Agora, quer dormir e não consegue. Em redor dela, há um silêncio que soa como um barulho insuportável. Dentro da sua cabeça, existe um vazio que parece mais pesado do que o chumbo.

Como acontece com o clima dos dias instáveis, na sua vida o sol tornou-se sombra e frio e chuva e trovoada e relâmpago e raio. Tudo o que lhe pertencia se fez alheio. Todos os gostos se lhe mudaram em desgostos. Quando deu por isso, estava apenas acompanhada de cuidados, pressões, impasses. Tornou-se insegura, inquieta, insatisfeita. Ficou ausente de si mesma e carregada dessa ausência. Quando quer saber o que lhe aconteceu, é como se lesse um texto numa língua que não compreende inteiramente e do qual só consegue decifrar algumas palavras. Cada dia que passa acrescenta-lhe o dia anterior de um problema, de um desgaste, de uma tortura. Olha-se no espelho e vê um rosto envelhecido pela surpresa lenta e dura da incompreensão. Vêm-lhe à boca palavras como azar, desventura, desânimo, derrota.

A noite cresce contra ela. Esteve horas sentada na cama, em frente da televisão, a pensar que não queria pensar. Olhou o ecrã, ouviu o som como se o aparelho estivesse estragado. Parecia-lhe que as vozes se aproximavam, depois que se afastavam. As imagens corriam, depois paravam. Ávida, comeu uma caixa de chocolates. O pijama ficou cheio de nódoas, o lençol babado de uma baba pegajosa e escura. Com a mão presa ao comando, mudou de canal sem parar, num zapping de si mesma, delirante e inútil. Não conseguia fixar a atenção. Ouvia palavras da política misturadas com gritos de crimes. Escutava números da economia sobrepostos a imagens de desportos. Tudo lhe foi a mesma coisa, o mesmo espectáculo indiferente. O estado de agitação e fadiga em que se encontra, com aquela espécie de jet lag perpétuo, abre-lhe as portas da percepção. Vê em si, com toda a evidência, aquilo que tinha apenas adivinhado: uma doença que nem esse nome quer usar.

Apaga a televisão e tenta adormecer. Não consegue. Tenta outra vez. Dá voltas e mais voltas. Olha o relógio. São cinco horas da madrugada. Liga a televisão outra vez. Continua a mudar de canal, à procura de uma imagem, de um som que a repouse. Dói-lhe o corpo, já não tem posição, agarra-se à almofada, estica as pernas. Tomou dois comprimidos para dormir. Está num canal que fala uma língua que lhe é desconhecida. Fica presa a uma imagem a preto e branco. Nela, uma mulher com um rosto roto pelas rugas corre à frente de quem a persegue. Uma música aguda segue-a também. A mulher cai e é apanhada. O plano muda e aparece um homem a falar com um gesto repetitivo. Ela não percebe o que ouve, mas percebe o que vê. Continua a olhar. De repente, fica com sono. Subjuga-se a ele. Está quase a adormecer, faz um esforço para aproveitar uma oportunidade que não se repetirá. Passam minutos e o sono passa também. Começa outra vez a dar voltas. Agarra um livro que tem à mão e tenta ler. Não consegue concentrar-se. As frases não chegam ao fim. É como se o livro fosse escrito na estranha língua do filme a preto e branco.

Fecha o livro, atira-o para o chão, com raiva. Apaga a luz, tenta dormir de novo, dá voltas e mais voltas. Não consegue. Levanta-se. Vai para o sofá, liga a televisão da sala. Passado um bocado, adormece. Sonha com a sua insónia. Dorme duas horas e acorda. Está torcida, amarrotada, desfeita. Tem o pescoço a doer-lhe. Olha a janela e vê que o dia começa a clarear. Fica perdida, suspensa. A televisão continua ligada e as suas vozes enervam-na. Tira-lhe o som. O tempo arrefeceu, mas ela não tem frio. Fica imóvel, a olhar o vidro embaciado da janela. Passa a mão pelo cabelo, pelo rosto, pelo corpo, a desejar a carícia que ninguém lhe faz. Permanece assim, nauseada, esgotada, anulada. De repente, o alarme do telemóvel toca. Assusta-se. Salta. Tem de se arranjar. Fica ainda um bocado sentada. Está quase a adormecer. Deixa-se dormir uns minutos. Acorda, estremunhada, com medo de já estar atrasada. Corre para a casa de banho. Toma duche num instante. Sai do banho, mas é como se a água a tivesse sujado.

Por: José Manuel dos Santos

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