“Tenho pelo menos a sorte de trabalhar perto dos livros, de poder mexer em livros”, dizia-me, sorrindo, a senhora da caixa de uma rede de livrarias, que se formou em Literatura sonhando ser professora. “Vou escrevendo umas coisas, nas horas vagas…” É assim o Natal no país moderno e tecnológico que temos. Os estudos literários metidos numa caixa registadora – o sonho de ensinar substituído por uma vida de trocos. Cá fora, na cidade, brilham em cartazes alguns rostos do sucesso português, com o futebol e o fado em primeira linha. O que sentirá esta mulher quando olha para estes rostos juvenis da glória pátria – concebidos e fotografados a alto preço?
As buzinas berram de impaciência. Porque é Natal, todos os automóveis estão na rua, e as pessoas atropelam-se nos centros comerciais. Há cada vez mais centros comerciais e cada vez mais gente dentro deles. Os meninos já não vêm de França no bico das cegonhas. Agora vêm dos centros comerciais. Como os adultos. “O que é preciso fazer para que nasçam mais crianças?”, perguntava candidamente o Presidente da República, há semanas. Gostei da candura da pergunta. A candura faz falta, sobretudo no Natal, quando todos os sentimentos são substituídos pelo stress do consumismo e pela febre da pedinchice. A resposta séria a essa pergunta cândida seria: é preciso, senhor Presidente, que se criem incentivos financeiros para que as empresas se estabeleçam no interior desertificado, e que se paguem salários decentes aos trabalhadores dessas empresas para que eles possam ter filhos. É preciso, senhor Presidente, que a discrepância entre os salários dos administradores da Coisa Pública e os empregados dela não seja tão escandalosa. Quem quer criar filhos para a fome e para o desemprego? É preciso, senhor Presidente, que não passemos pela vergonha de encontrar portugueses com estudos superiores a trabalhar em caixas registadoras.
Cravam-se os artistas até ao tutano, porque é Natal. Mas nem é preciso que seja: vivemos em Natal a tempo inteiro. Tradição cristã: depois do primeiro milagre, Cristo nunca mais teve sossego – eram cunhas, empenhos e requerimentos para milagres sucessivos. É essa a grande especialidade católica nacional: pôr as mãos em alvo e a voz em súplica para mendigar mais um milagre. E fazê-lo com o travo de mando próprio do ressentimento: “Tu, ó sortudo, que tens uma boa posição na vida, vê lá se me dás o que eu quero. Não te atrevas a dizer-me que não – quem pensas tu que és?” Quem pede conta com a culpa ontológica do outro. Cristo sentia-se culpado de ser filho de Deus, por isso se deixou explorar tanto pela ganância dos simples filhos dos homens – que o utilizavam como mera escada de acesso aos seus édens específicos. Está no Novo Testamento, claríssimo. E na vida quotidiana, refulgindo como as luzes do Natal. Se Cristo não tivesse morrido na cruz, teria morrido de exaustão, estoirado de milagres. Ou abandonado ao pó das ruas, no dia em que desistisse de fazer milagres. A nossa é ainda a civilização do contraste entre os deuses milagreiros e os simples mortais – ninguém pensa no esforço que custou, a cada um dos precários deuses humanos, a subida até ao Olimpo. A tese do milagre continua a sobrepor-se à ideia cândida do trabalho contínuo.
A imagem que melhor simboliza o Natal que falta é a de Ingrid Betancourt – presa pelas FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) há quase cinco anos, quando se aproximou delas, de coração aberto, tentando o diálogo. “Premio mayor”, chamou-lhe Manuel Marulanda, o chefe da guerrilha. Era então uma jovem, valente e radiosa candidata à Presidência. Abdicara de uma vida confortável em França para lutar por uma Colômbia democrática e liberta dos crimes da corrupção. Tinha um currículo cívico irrepreensível – o seu erro foi o de acreditar que as suas boas intenções comoveriam a guerrilha. Numa reportagem publicada pela revista “Visão” (13/12/2007), um ex-guerrilheiro declara: “Cada vez que ocupávamos uma aldeia, no papel deveríamos constituir uma assembleia popular, depois organizar a gestão com os habitantes. Na realidade, nunca houve nada disso. Nós éramos mercenários, nada mais.” A guerrilha filmou agora o seu “premio mayor”: uma mulher esquelética e envelhecida, prostrada, que se recusa a olhar a câmara – essa recusa é hoje a sua única liberdade, e a única força que lhe resta. Estima-se em cerca de 700 o número de reféns das FARC – Ingrid é apenas a imagem da destruição voluntária e programada das melhores qualidades e capacidades humanas. Por isso, o seu salvamento seria um princípio de Natal. Era bom que isso acontecesse nos dias que separam a escrita e a publicação deste texto – sonho ver as minhas palavras ultrapassadas por esse Natal. Sonho que o Partido Comunista Português aproveita a época para, pelo menos, pedir perdão pelo apoio que tem dado a esta guerrilha infame. Sonho demasiado, bem sei.
Se a imagem da dor de Ingrid se multiplicasse em cartazes pelo mundo inteiro, talvez o milagre acontecesse. O milagre do empenhamento humano, o único que pode transformar o mundo.
Por: Inês Pedrosa