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Indicadores (I)

Foi nos finais de Julho de 1972 que atravessei a fronteira. Ainda era estudante e dirigia-me a Barcelona. Em Vilar Formoso apanhei uma boleia até Miranda de Ebro; e, aí, meti-me no comboio até à capital catalã. Barcelona era uma metrópole, breve me familiarizei com ela e, às vezes, durante algum tempo, no Passeio de Colombo, junto ao porto, detinha-me a analisar o trânsito e o parque automóvel. (Desculpa ao leitor: sou filho de transportador, de um homem perspicaz, dado à reflexão e à indução).

Aí, na baixa da cidade condal, vi um veículo, já não recordo se táxi, que, no mínimo com quarenta anos supus, continuava ao serviço. À ida vi umas caminhetas Ebro com motores Perkins e habitáculos da Ford Thames britânica, Seat’s 600 e caminhões Pégaso barulhentos. No regresso, em Madrid, em plena Praça de Espanha, ao fundo da Gran Via, uma caminheta Chevrolet de 1937 ou 1938.

O nosso parque automóvel era tão superior ao espanhol que me condoeu e um natural de Badajoz disse-me um dia que os estremenhos, às vezes vinham a Elvas só para verem as “espadas” portuguesas. Disse-me que ficavam impressionados. Acredito absolutamente, claro.

A “Guerra Civil Espanhola” foi um teatro de inadjectivável violência e, na década de 50, carros de bois ainda abasteciam Madrid com arbustos como combustível para padarias, por exemplo. Espanha ficou destruída, a peseta praticamente não tinha cotação, do lado de lá da fronteira, Salamanca incluída, os comerciantes era servis para com os nossos compatriotas que lhes compravam os produtos com moeda bem sólida. Franquistas e republicanos, enquanto sanguinários, mostraram nada ficarem mutuamente a dever-se.

Ao franquismo, portanto, pode culpar-se por horrenda violência – não por ignorância do que o movia, do que queria, de falta de determinação. E o seu suporte teórico tinha a solidez de um rochedo – era a Igreja Católica –, e uma sábia francesa com quem, em 1980, numa das mais famosas escolas mundiais de nutrição, nos EEUU (Texas), privei, deixou-me esta síntese: «Franco intuiu que a Espanha precisava de duas coisas: pão e água». A Espanha ficou arrasada, repita-se.

A Franco nada o desviaria do seu caminho. E não era fácil prossegui-lo. De Barcelona para Madrid, durante a minha viagem, uma série interminável de carruagens transportava turistas de pé descalço ou dos três s (sex, sun, sea: sexo, sol, mar). A Espanha não tinha, então, muito mais para oferecer. Mas nenhum desfalecimento impediu o vencedor da contenda de ir ganhando terras para a agricultura, de ir estendendo as obras de hidráulica, de continuar em… autarcia e… orientar-se por padrões europeus (as colónias espanholas tinham-lhe desaparecido das mãos há muitíssimo tempo).

A idiossincrasia espanhola está nos antípodas da portuguesa, razão por que o iberismo que entusiasmou alguns nomes sonantes, digamos, dos fins do século XIX, não passa de atitude de intelectuais (Oliveira Martins, Latino Coelho e Teófilo Braga foram alguns deles).

Nos antípodas porquê? A Espanha é o resultado de uma luta que começou com Pelágio, nas Astúrias, em 718, e terminou em 2-I-1492 com a tomada de Granada aos muçulmanos. O espanhol afirma-se, é ufano, tem presença, projecta-se; e um analitismo linguístico em que não é difícil ver a precisão militar que durante séculos lhes foi absolutamente necessária contra o “infiel”. “Infiel”, porque seguia outra religião que não a verdadeira – a sua, a católica romana.

O português é um ser de alteridade, de se pôr na pele do outro, para ver que relações pode estabelecer. Não foi a gesta ultramarina que enformou crucialmente a identidade lusa? Não foram os portugueses os primeiros grandes globalizadores (como agora se diz)? Não foi devido a isso que deixou o Catolicismo numa Índia, no Brasil, no Extremo-Oriente, na Oceania, em África? Pois onde radicam as singularidades goesa, brasileira, macaense, timorense, angolana… senão aí? Quem pretende ser acolhido tem que ser acolhedor, aprofundar sentimentos. Para o bem e para o mal – todas as identidades têm bem e mal… – somos o idioma do sufixo inho (bichinho: o gato, v.g.). Ou, como me dizia numa viagem de metropolitano, em Madrid, um dia, uma muito bela cantora de ópera, galega, com quem entabulei conversa: “um excessivo lirismo”. Referia-se à música do meu amigo António Pinho Vargas.

E é o que nós somos: de um excessivo lirismo.

Guarda, 27-VI-08

Por: J. A. Alves Ambrósio

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