O jornalismo é uma instituição fundamental, preciosa e imprescindível para toda a sociedade, pois serve ao interesse público. Muitos dirão que outras instituições, como a política, o fazem. Obviamente. Mas, em minha opinião, o jornalismo fá-lo de maneira frequentemente melhor. Ao manter a clássica postura de vigilância sobre as outras instituições, com distanciamento ético, cimenta uma sociedade de valores supremos. Valores como a liberdade com responsabilidade, a “transparência” institucional e, entre outros, a dignidade e protecção dos Direitos do Homem. Arrisco a dizer que mais nenhuma outra instituição cumpre essa singularidade de representatividade plural, em defesa de uma consciência cidadã. Desenvolve tarefas essenciais para o mais amplo benefício da sociedade, nos mais variados campos da vida social, cultural e política.
Mas será assim o jornalismo na prática? Não é um exagero elevá-lo a tão alta distinção? Claro que há, frequentemente, distâncias fracturantes entre esta ideia (apaixonada) e o que se passa na realidade. Quando falamos de jornalismo, obrigamo-nos a fazer diversas distinções consoante os modelos de negócio, as práticas, a vocação das publicações, os princípios estatutários, os contextos, os patrões, as dinâmicas do mercado, entre muitos outros aspectos. Costuma-se dizer, um só mundo vários jornalismos. Por isso, qualquer generalização não passa de uma mera visão simplista. O principal perigo, contudo, reside na concepção do jornalismo – aquele que se autolegitima na especialidade informativa e de investigação – como um mero ramo de negócios ou de serviços industriais, como qualquer outro. Não é a mesma coisa. Obviamente que ele é, simultaneamente, uma instância de serviços sociais para com a cidadania e um sistema industrial de serviços para alimentar o mercado de informações, de acordo com o interesse das audiências. Defendendo-se legitimamente como um negócio – o que actualmente é um exercício nada fácil quer pelo baixo índice de leitura, quer pelas debilidades do mercado publicitário – o jornalismo deve ter “amarras” ao valor universal de servir os cidadãos, sendo-lhe fiel acima de quaisquer outros interesses, na procura desinteressada da “verdade” (uma verdade funcional e não científica, portanto sujeita a todas as subjectividades). Cumpre-lhe esse grande objectivo de se bater por uma consciência cidadã dos seus leitores. E, por obrigação ética, uma auto-consciência cidadã dos seus profissionais.
Preservar o “interesse público”
O importante é que o interesse público, entendido como o direito que o público tem de saber coisas do seu próprio interesse, seja sempre preservado. O jornalismo assemelha-se a canais de irrigação por onde deve circular a livre opinião pública – essa entidade difusa mas poderosa – e para garantir que os seus interesses sejam reconhecidos e satisfeitos. Esse é o factor de maior questionamento em redor do que, nas decisões do dia-a-dia de cada jornalista ou director de jornal, se transforma em notícia e com que protagonistas. Que temas, que assuntos, que abordagem, que perspectiva e que vozes asseguram melhor esse princípio de serviço público? Melhor do que eu, todos os que neste ou noutros jornais estão incumbidos de tomar tais decisões o saberão.
Estas palavras levam-me, com saudade, à adrenalina das redacções. Ao tempo de uma experiência fundadora e rica, que contribuiu para o modo como hoje reflicto a relação sinérgica entre sociedade civil, Estado e comunicação social. O valor do serviço a um bem maior, o chamado “bem comum”, é como que uma “tatuagem” na consciência de um jornalista. É uma afirmação pretensiosa. Arrisco-a. Ela é igualmente aplicada a tantas outras profissões, a começar pelos políticos – eleitos com essa obrigação moral de servir o “bem comum”. Mas do que falo – perdoem-me os políticos e outros profissionais que, tenho a certeza, todos os dias se erguem na excelência de servir os seus concidadãos – é de uma “liberdade de consciência” para revelar os abusos contra o “interesse público”. Não uma consciência persecutória ou delatora, motivada pela corrida à “cacha” jornalística, mas uma consciência deontologicamente orientada para sacrificar tudo e todos ao escrutínio público, em nome do bom jornalismo.
Muitos desses abusos ou desvios à funcionalidade coerente, sobretudo, das esferas governamental e política (local ou nacional) são provocados por “fascismos” impregnados nos sistemas da administração pública e política (local, nacional ou internacional). Veja-se, a este propósito, a oportuna reflexão de Boaventura Sousa Santos (Portugal – Ensaio contra a autoflagelação, Almedina, Lisboa, 2011), para quem urge democratizar a democracia. O jornalismo é, em suma, um porto de abrigo a favor dessa democratização, irrigando, a partir das suas fontes, um amplo debate que seculariza o poder, retirando-o do segredo e expondo-o ao escrutínio público numa perspectiva de discussão aberta.
Nessa medida, a particularidade da chamada “imprensa de proximidade” – de que este jornal é um bom exemplo – tem ainda mais acutilância nesse papel de transformar sociedades fechadas e contribuir para a “regeneração” de um espaço público adormecido, potenciando a sua capacidade racional e acção cívica sobre assuntos da res publica.
Para cumprir efectivamente esse papel de relevância social, como vimos antes, é necessário que a imprensa de expressão local e regional – como um subsector da grande imprensa – se consubstancie em projectos capazes de corresponder a uma verdadeira dimensão de proximidade, sem dependências comprometedoras para um trabalho informativo pluralista, abrangente, significativo, substancial e útil para a sociedade civil local.
Essa relação de proximidade, que é informativa e comercial, deve ser olhada quanto às suas oportunidades e ameaças cujo equilíbrio determina a sobrevivência dos jornais locais. Corresponder às necessidades da opinião civil, no âmbito do dever de cidadania de qualquer jornal, alimentar o mercado das informações a favor do interesse das audiências e captar fatias publicitárias para garantir os negócios é um dos mais desafiantes e complexos objectivos de futuro. O desafio e a complexidade aumenta ainda mais porque a imprensa tradicional, seja local ou nacional, já não tem o exclusivo da mediação informativa. O que antes era visto como massa indeterminada de receptores passivos – o público – tem hoje um papel proactivo de reflexão partilhada e emissão de discursos concorrenciais. A internet redefiniu o campo e lançou novos jogadores na luta simbólica do espaço público. Esta realidade é, em teoria, ameaçadora da legitimidade dos jornalistas e da confiança pública na sua função social. Para manter os jornais não basta o discurso de autolegitimação, simplificada em slogans, de que eles, como há duzentos anos, são a única mediação confiável para a sociedade civil. Multiplicaram-se as vozes e as narrativas pós-jornalísticas, de que a internet é mãe, em modelos de comunicação horizontais de muitos para muitos.
O jornalismo de expressão local e regional – também cada vez mais global pela apropriação das ferramentas online, como é o caso dos jornais da Guarda, em particular O INTERIOR com uma extensão nas linguagens da televisão – tem um desafio de continuar a assumir-se, sem arrogância, como espaço de afirmação e defesa de causas comuns. Sem tomar partido entrincheirado ou bairrista, mas ao serviço de uma sociedade civil mais informada, mais apta a pensar racionalmente o momento histórico que lhe coube como destino. Mais apta a agir pelos seus próprios interesses, quando reconhecidos como sendo da generalidade da comunidade de pertença. Não tenho dúvidas de que o jornalismo local contemporâneo na Guarda, com base na experiência que partilhei com excelentes profissionais (também neste jornal que ajudei a nascer, permitam-me a imodéstia), já se assumiu como uma das mais importantes instituições de serviço público. Não é fácil provar, cientificamente, uma relação directa entre a profissionalização da imprensa, como alavanca do agir colectivo, e o aumento de emancipação política dos cidadãos da urbe ou, sequer, o seu desenvolvimento. Mas, como opinião pessoal e convicta, contando com todas as dinâmicas sectoriais de natureza económica e comercial que fizeram naturalmente avançar a cidade, basta uma breve análise diacrónica sobre a dinâmica da informação pública antes do aparecimento de jornais como o Terras da Beira, Nova Guarda (fatalmente extinto) e O INTERIOR para se perceber as mudanças. Ainda me lembro dos primeiros incómodos da esfera política local perante a acutilância de simples perguntas jornalísticas. E se a memória não for curta, os mais assíduos leitores da imprensa local, desde o início da década de 90, lembrar-se-ão da audácia criativa e profissional e dos impulsos emancipatórios de que foi pioneiro o jornal TB. Justiça seja feita.
Voltando às primeiras linhas deste despretensioso contributo para a edição especial de aniversário do jornal O Interior – a quem se devem 12 anos de bom jornalismo e de quem se espera longa vida a bem do nosso “bem comum” – reafirmo a importância cada vez maior da imprensa, em particular esta a que chamamos local, porque dela depende muito daquilo que seremos no futuro. Assim continue a ter coragem editorial, acutilância profissional e sentido de serviço ao público-cidadão. Se o fez bem até aqui, se o está a fazer bem no presente, cabe ao leitor-cidadão ajuizar. E através da publicitação desse juízo clarividente e honesto – seja por meios offline (cartas ao director, espaço do leitor…) ou online (e-mail, media sociais…) – se pode elevar a confiança na sua função social e contribuir para melhorar as suas práticas jornalísticas. É dessa confluência pluralista com mais vozes (nem sempre as mais óbvias) que se pode construir um caminho promissor para a melhoria da qualidade da cidadania, da democracia e do desenvolvimento local.
Victor Amaral, ex-jornalista de O INTERIOR, docente no Instituto Politécnico da Guarda
Nota: Texto escrito com a antiga ortografia