Há uma dimensão simbólica na política que nem sempre é fácil distinguir, para lá da diária luta pelo poder, partidista, estratégica, com que tendemos a confundir este domínio fundamental e inescapável da vida de todas os grupos humanos. Há uma dimensão simbólica e profundamente vital na política que diz respeito, assim mesmo, à forma como vemos o mundo das relações sociais, como o construímos nos seus traços definidores, como queremos interferir nele, como o queremos mudar. Há uma dimensão simbólica, vital, entregada, daquela política que insiste em negar os preconceitos, mais ou menos justificados, dos que vêem nela a mera retórica e o instrumento de pequenos interesses, legitimados pela indiferença de sempre ou pela hegemonia das ideias irresistíveis. E há imagens que por vezes fixam os símbolos de que é feita a política, e com que a política constrói o mundo. Num mundo a abarrotar de imagens, onde tudo é transformado em imagem e assume o valor que se cola a ela – num mundo que as consome a ritmo vertiginoso para logo a seguir se desfazer delas – torna-se difícil reconhecer as que atingem valor de símbolo porque investidas do poder de evocar as grandes questões da humanidade. E do poder de nos confrontar a todos com a maneira como naturalizamos as imagens que nos rodeiam e também nos tornam aquilo que somos.
Se há hoje uma imagem proveniente do domínio político, simbólica e evocativa, em que vale a pena deter o olhar e reflectir profundamente, essa imagem é a da nova ministra espanhola da defesa, Carme Chacón, grávida de sete meses, a passar revistas às tropas no exercício das suas funções. A imagem correu mundo, e uma parte daquilo que ela encerra não deixou, por certo, de ser percebido pelos públicos expostos a tamanho desafio, quer tenham aplaudido quer tenham deplorado o que há nela de iconoclastia e, portanto, de rejeição de um certo modelo do mundo. Não é difícil perceber a perspectiva feminista da opção política de Zapatero, que acaba de formar um governo com mais mulheres que homens e de colocar à frente da defesa, uma das pastas com maior orçamento e com funções de soberania, uma delas – pela primeira vez na história de Espanha – e grávida – é importante insistir. Convergem nessa perspectiva o argumento mais tradicional da igualdade entre homens e mulheres e o da necessidade simbólica de investir as mulheres em cargos de alta reputação e responsabilidade, num país onde a violência de género, machista, é uma chaga social e se alimenta da invisibilidade das mulheres na esfera pública e do consequente sentimento de impunidade de quem cobardemente exerce essa violência. À frente do aparelho de defesa do estado espanhol, em revista às tropas que se alinham perante uma mulher – “Capitán, mande firmes!” [seguido de toque de corneta] – ou em visita a cenários de operações militares como o Afeganistão, a figura de Carme Chacón de alguma forma ajuda a exorcizar o fantasma do machismo que ronda a sociedade espanhola.
Mas a imagem evoca muito mais e é muito mais poderosa do que tem sido destacado pela comunicação social. A mulher grávida que passa revista às tropas representa um desafio fundamental à noção tradicional, masculina, de segurança que tem sustentado as funções agora exercidas por Carme Chacón. Num mundo realista e masculino, a condição para a segurança assenta exclusivamente na resposta militar às ameaças que vêm do exterior e na possibilidade de mobilizar um batalhão de Rambos que torne eficiente esta opção. Ao contrário, a figura de Chacón, grávida, invoca uma noção alternativa de segurança humana, mais abrangente, implícita na milenar imagem da Mãe com o Filho ao colo, e em que a condição para estar seguro passa a ser uma propriedade dessa relação, como refere Bill McSweeney, “uma qualidade que os torna seguros um no outro”. A imagem evoca todo um conjunto de valores, e o alargamento da perspectiva quanto à produção de segurança, que devem guiar o comando das forças armadas numa democracia progressista. Por isso mesmo, as últimas palavras de Chacón no seu discurso após as primeiras ordens às tropas foram uma declaração de amor à Espanha unida mas plural, à paz e à liberdade.
Por: Marcos Farias Ferreira