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Histórias do Oppidana

atmosfera PORTÁTIL

Os jovens de hoje que vivem na Guarda não saberão, mas a verdade é que houve tempos difíceis nesta cidade para ver cinema. Ainda na década de 80 cheguei a assistir a sessões de cinema no velhinho e decrépito Cine-Teatro da Guarda. A princípio, com uma programação mais cuidada, e uns anos mais tarde, com obscuros filmes de kung-fu e, pior ainda, com filmes pornográficos. Um primor, portanto. Esta tendência ditou, inevitavelmente, o encerramento do Cine-Teatro como espaço de programação de cinema na segunda metade dos anos 80. Apesar da fase decadente pela qual passou o histórico e outrora majestoso Cine-Teatro, recordo-me bem de ter assistido, com uns 16 anos de idade, à projecção do filme “Apocalypse Now” de Francis F. Coppola numa gélida noite de Inverno. Um filme que marcou profundamente a minha adolescência e que contribuiu para a minha posterior paixão pelo cinema. Foi difícil suster a amargura, durante anos, pela inexistência de um espaço condigno para ver cinema na Guarda até que, em 1989, surgiu o abençoado Cine-Estúdio Oppidana. Nos primeiros anos de funcionamento da sala, e apesar da limitação pela exibição de um único filme por semana (sempre da Lusomundo!), assistia a todas as sessões semanais: as sessões com bom cinema (Martin Scorsese, Woody Allen, Spike Lee, Stanley Kubrick, David Lynch) e as sessões com péssimo cinema. E houve até semanas em que fui mais do que uma vez a ver o mesmo filme (de qualidade, entenda-se).

Sentia uma espécie de compulsão quase doentia por visionar tudo o que podia, mesmo sabendo à partida, quais seriam os bons e os maus filmes. Particularmente interessante, durante os dois ou três primeiros anos do Oppidana, foram as sessões especiais da meia-noite, às sextas-feiras, logo após a sessão regular. Eram sessões especiais com filmes de culto e de autor, imperdíveis para quem, como eu, tinha sede de propostas artísticas inovadoras e alternativas.

Particularmente histórica foi uma sessão especial do clássico mudo “O Couraçado Potemkine” (1925) de Sergei Eisenstein: estávamos em 1995, comemoravam-se os 100 anos do cinema e o filme foi programado pela Câmara Municipal da Guarda. Recordo-me que faltei às aulas para poder ver o filme em ecrã gigante, numa sessão única durante a tarde de um dia de semana. Estavam alunos de Comunicação do ISACE que só faziam comentários despropositados e ignorantes em relação à obra que visionavam (“filme a preto e branco, russo e mudo?!”). Por outros motivos, foi igualmente histórica a exibição do filme “Titanic” (1997), mega-êxito que esgotou a sala durante semanas com filas hercúleas para comprar bilhete. A partir de 2000, o Oppidana entrou num declínio acentuado ao nível das instalações e da programação boçal e medíocre (só eram exibidos na Guarda os resquícios comerciais que sobravam do resto do país e em cópias péssimas), até que encerrou em Abril de 2006, para voltar a abrir um ano mais tarde com a sólida gestão da Culturguarda.

Ainda hoje conservo centenas de bilhetes das sessões a que assisti no Cine-Estúdio e retenho na memória o último grande filme que vi lá, o majestoso “Eyes Wide Shut” (1999) de Kubrick. O que fica é a certeza que aquela sala de cinema, por detrás do Hotel de Turismo da Guarda e que um dia será votada ao total esquecimento, foi palco de grandes emoções, experiências e aprendizagens para a minha formação cultural e humana.

Por: Victor Afonso

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