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Histórias da vida

Saliências

O Júlio perdeu os pais aos dois anos e foi educado pela avó até à sua morte. Depois foi para Lisboa onde aos dez anos começou a trabalhar e lhe deram uma cama. “Vais para gente de bem”. Nunca entrou na sala das pessoas de bem. Viveu no vão de escada, passando algum frio, vergonha e muito medo. Aos dez anos trabalhava muito e aprendia a ler com os colegas mais velhos da profissão. Eles liam sobre o futebol e ele aprendia as letras e depois as palavras. Aos quinze anos tinha corpo de homem e vontade de ferro. Comprou um jornal, procurou emprego e partiu daquela cama no vão da escada. O Júlio só sabe que aquela família nunca lhe deu carinho, conforto ou amizade. Ali deixou trabalho e a companhia do cão. Foi servir uns patrões espanhóis que lhe deram cama, quarto e casa de banho. Por vezes convivia na sala onde tomavam café. Júlio só descobriu o afecto aos vinte anos, com uma jovem desafortunada como ele. Vieram aos setenta anos ao meu consultório com a mão na mão. Ele combalido e gasto pelas doenças, ela temendo o que vou dizer. As mãos encastoadas como a jóia no anel. O Júlio teve uma vida terrível, que lhe enruga as memórias. São sulcos profundos “da gente de bem” e um sorriso pelos espanhóis. Doeu-me saber que o vão de escada lhe foi dado por portugueses, da terra dele. Eu já sabia que nem toda a gente é pessoa, mas…

Por: Diogo Cabrita

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