A Senhora Professora Luísa Queirós de Campos, doutorada em Literatura Inglesa e Professora Coordenadora de Literatura Inglesa no Instituto Politécnico da Guarda, acaba de escrever neste jornal (Vd. edição da semana passada) um texto intitulado Usque Quantum, Americe, patientia nostra abutris?
Ora, a Senhora Professora começa por fazer uma minuciosa análise semântica de declarações públicas prestadas pelo director artístico do T.M.G. Demonstra assim uma invulgar sintonia com a recente técnica da vivissecção vocabular, aplicada à crítica literária e popularizada por João Pedro George, no seu livro Não é Fácil Dizer Bem. Que a cultura não precisa da autorização nem do aval dos poderes, estamos todos de acordo. O único senão é que esquece o contexto em que aquele enunciado se produziu. Esquecer o referente não parece ser muito ortodoxo, Senhora Professora!
Mas a Doutora, para além do inusitado e burocrático zelo dispendido com as habilitações escolares do Director Artístico do TMG, nada traz de novo quanto a uma crítica consistente e sustentada sobre as opções de programação do TMG. É que, em 272 actividades desenvolvidas até agora (não contabilizando as que dizem respeito ao Serviço Educativo), a Senhora Professora elegeu, como referência…duas! Será porque só presenciou essas? Porque não quer falar das outras a que assistiu? Porque já viu o mesmo em Itália, Londres ou Nova Iorque? A dúvida subsiste. Mas é muito pouco, e demasiado leviano para ser credível, afirmar que a programação é pouco “popular”, sem apresentar dados, grandezas, informação objectiva, matéria-prima que legitime qualquer tratamento crítico que depois faça.
Por outro lado, enunciar de forma avulsa uma série de nomes de referência da música e do teatro é colocar o problema de forma caricatural, não lhe parece, Senhora Professora? Julga que encenações desses autores e repertório desses compositores andam por aí, a pairar, à espera que um programador detecte o sinal e as traga ao palco? Anda iludida, Senhora Professora! Programar, segundo creio, é antes de mais, saber não ser neutro com o que se escolhe. Mesmo no âmbito daquilo a que se designa serviço público. Diria até que se pode sempre escolher, de entre o que há em determinado momento, de acordo com a natureza da programação que se elegeu (e do orçamento, é claro). Pode-se mesmo, o que é desejável, mobilizar agentes locais e acolher produções originais, a solo ou em regime de parceria (já participei em duas, por sinal). Em contrapartida, quase nunca essas opções se fazem por obras ou autores pré determinados. Pelo menos, neste tipo de instituições.
A Guarda tem ainda alguns trunfos estratégicos que seria insano largar mão, Senhora Professora. Um deles é precisamente o facto de, há duas décadas para cá, ter sabido ganhar e consolidar uma posição de relevo no roteiro cultural nacional, conquistando públicos e o reconhecimento da crítica especializada. Não quer que voltemos atrás, pois não?
Concordo obviamente consigo quando adverte dobre a pluralidade do público. Até iria mais longe: em rigor, o público não existe, mas indivíduos cuja motivação para com as manifestações culturais que frequentam é vivida de modos infinitamente diferentes. Mas se falarmos na relação constante que mantêm com essas manifestações, desde logo se cria uma clivagem fundamental: para alguns, como já escrevi, a cultura é normalmente invocada como um lugar onde se nivelam e apagam as tensões e os desequilíbrios éticos e sociais. Para esses, tudo se esgota na simples presença em dado evento. Para outros, porém, as culturas são expressões de permanente tensão entre as várias representações que vários grupos fazem de si e do outro. A sua expressão pública não é, nem pode ser, pacífica nem ingénua, sendo certo que a imprevisibilidade do resultado será um modo possível da sua manifestação. Para esses, em suma, as opções de vida que tomam raramente são desligadas das opções artísticas que perfilham, sobretudo as que dizem respeito à modernidade. O T.M.G pode e deve existir para uns e para outros.
A Senhora Professora afirma, por outras palavras, que a programação do Teatro Municipal da Guarda tem sido um regabofe elitista e experimentalista. Onde pretende chegar? Não é que eu acredite, mas será que pretende recolocar o debate em paragens onde ele já esteve – o populismo – só que agora revisto e aumentado com uma retórica esquerdista e atávica?
Por: António Godinho